Bruce Springsteen e o terrorismo na Europa
A poucos dias do final de 2024, a Europol publicou o seu Relatório TE-SAT, um documento que analisa o estado do terrorismo na Europa no ano transato. Os números de 2023 não sobressaltam quem acompanha o tema, mas surpreenderão o grande público.
Comecemos pelos atentados. Verificaram-se 120 incidentes, dos quais 98 foram consumados, 9 fracassaram e 13 foram frustrados pelas forças e serviços de segurança. Ao olhar para as motivações, chegam as surpresas: a maioria dos ataques foram perpetrados por separatistas (70, todos consumados), seguidos pela extrema-esquerda e anarquistas (32, dos quais 23 consumados), pelo jihadismo (14, dos quais 5 consumados) e, por fim, a extrema-direita (2, ambos frustrados).
Portanto, em termos quantitativos, a extrema-direita é a menos relevante, embora ocupe todos os dias uma parte importante do discurso mediático. Já a extrema-esquerda, ausente do debate público, está num lugar cimeiro na lista de incidentes. Note-se que o lugar seria ainda mais destacado se alguns grupos separatistas fossem classificados de acordo com a posição que ocupam no eixo esquerda-direita e não em função dos seus objectivos.
A imensa maioria do terrorismo de extrema-esquerda ocorreu em Itália, havendo também actividade registada na Alemanha, Grécia e Espanha, quase sempre associada a movimentos anti-capitalistas, anti-Estado e anti-NATO.
A tendência não é nova. No período 2019-2023, só em 2021 a extrema-direita superou o seu equivalente à esquerda em número de incidentes, mas com uma diferença pouco expressiva (6 contra 1). Aliás, a extrema-direita foi responsável por um número mínimo de ataques, com poucas oscilações (2 incidentes em 2019 e outros 2 em 2023), enquanto a extrema-esquerda exibe variações maiores e ordens de grandeza mais importantes (26 incidentes em 2019 e 32 em 2023).
Os números surpreendem por várias razões. Primeiro, porque o debate público confunde a direita radical populista, cujos partidos políticos ascendem com força na Europa, com a extrema-direita. Quais as diferenças? A primeira não é violenta e, por norma, aceita as regras do jogo impostas pelas ordens constitucionais, ainda que constitua um desafio evidente à democracia liberal; A segunda é violenta por definição, rejeitando sem pejo as leis que regem a vida em sociedade. Esta confusão turva as notícias e análises quotidianas e torna impossível a cabal compreensão do fenómeno terrorista.
Terceiro, porque associamos a extrema-esquerda ao passado. Em particular, à terceira vaga de terrorismo internacional, entre as décadas de 1960 e 1990, conhecida como ‘os anos de chumbo’. O tempo passa, mas as ideias ficam.
Por fim, os números causam desconcerto porque o espaço público tem uma enorme dificuldade em acomodar matizes e aparentes incoerências - sobre terrorismo ou qualquer outro assunto. Sim, é verdade que nos últimos anos houve um crescimento de actividade na extrema-direita, hoje mais ambiciosa, facto preocupante que merece ser noticiado. Mas é igualmente verdade que esta forma de terrorismo está ainda longe dos níveis de ameaça jihadista e de extrema-esquerda.
O que nos leva a Bruce Springsteen. Há uns anos, numa palestra, o músico norte-americano instou-nos a desenvolver a capacidade de albergar duas ideias contraditórias no coração e na mente. Este apelo à moderação adulta, capaz de gerir as contradições e as subtilezas inerentes à vida de qualquer criatura pensante, é uma boa resolução de ano novo. Serve para tudo, até para analisar os números do terrorismo na Europa. Votos de um excelente 2025.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.