Opinião
18 agosto 2022 às 22h46

Batons, champanhe e teletrabalho

Miguel Romão

No The Washington Post nesta semana recordava-se que as variações nas vendas de batons, de roupa interior masculina e de champanhe são excelentes indicadores do estado de uma economia.

As vendas de champanhe sobem em momentos de crescimento, o que, dir-se-á, é natural. Festa é festa, afinal. As vendas de roupa interior masculina retraem-se anunciando períodos de recessão, quando o que não se vê no imediato se torna ainda menos prioritário para este público masculino. Mas a venda de batons, e mesmo de outros produtos de cosmética, sobe em momentos de crise económica - o que já não é assim tão intuitivo.

A explicação tem sido encontrada no facto de ser um produto razoavelmente barato e que oferece um reforço rápido de confiança e de melhoria autoprognosticada da aparência das suas consumidoras, por um preço baixo. Quando tudo o resto corre mal, por poucos euros pode-se simultaneamente aumentar a autoestima e tornar-se eventualmente mais competitivo, seja para encontrar um emprego, seja para encontrar um parceiro com quem repartir despesas. Por mais misógina que possa ser esta visão, parece que é o que acontece. Aumenta o desemprego, aumenta a incerteza, aumenta a venda de batons. Acho que não podemos garantir que o designado "lipstick index" seja uma lei universal e à prova de qualquer teste, mas, para as empresas de cosmética, é pelo menos uma garantia adicional.

Este introito também vem a propósito do facto de uma das mais relevantes empresas tecnológicas de nova geração, a AirBnB, ter decidido que os seus trabalhadores poderão agora mudar-se para qualquer sítio do mundo, trabalhando remotamente, a partir de sua casa ou de um escritório numa localização acordada (há já vinte destinos no mundo nestas condições, um deles Lisboa, a par da Colômbia, de Bali ou da Tailândia), sem reduções salariais (ao contrário do que sucedeu com outras empresas que adotaram de forma mais generalizada o teletrabalho, desde logo nos EUA, onde a AirBnB tem a sua sede, em São Francisco).

Ora, será que a percentagem de trabalhadores em teletrabalho tem potencial para se tornar um novo "lipstick index"? A par das lições sobre a relevância pública dos serviços de saúde e sobre a capacidade industrial para criar e produzir vacinas em larga escala, o que seguramente ficará do período mais agudo de pandemia de covid-19 é a realidade do teletrabalho. Até agora, neste contexto, o aumento do teletrabalho está associado a uma recessão, dificuldades, crise. A partir daqui como será? Será a proporção de trabalhadores em trabalho remoto associável a alguma tendência? E como funcionará a capacidade de uma economia prescindir, num volume que seja apreciável, desses também consumidores internos, pensando nas opções mais radicais e mais instagramáveis, do computador portátil com uma margarita e um pôr do sol ao fundo, a trabalhar para um empregador a 7000 quilómetros?

O que se tornará mais relevante e mais atrativo? O empregador que é capaz de assegurar e recompensar com um salário e qualidade de vida num contexto de vida que permita a um trabalhador manter uma casa, acesso a saúde e escola para as crianças num padrão elevado, mesmo que tenha que permanecer meio recluso na fria Escandinávia ou no chuvoso estado do Oregon? Ou o empregador que apenas pretende um resultado, podendo por ele o seu trabalhador ficar sempre ou quase numa cabana numa praia do Índico, pela qual pague 100 dólares por mês e a temperatura nunca desça abaixo dos 25 graus?

Não será difícil antecipar que esta nova realidade trará provavelmente uma nova cisão geracional, a acrescentar às demais fraturas que o mercado de trabalho já proporcionou nas últimas décadas. Trabalhadores mais jovens procurarão possivelmente essa flexibilidade do teletrabalho e a oportunidade de assim conhecer o mundo. Trabalhadores com mais idade privilegiarão mais a certeza de que podem estabelecer-se, com um mínimo de previsibilidade, num espaço onde as necessidades da família, a saúde e a rotina são as mais decisivas. Alea jacta est.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa