Bata e violência contra as mulheres

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A violência contra as mulheres continua a ser uma ferida aberta na nossa sociedade. Não é um problema distante, escondido ou excecional, é quotidiano, persistente e inquietantemente normalizado. Portugal regista, ano após ano, centenas de mulheres agredidas dentro das suas próprias casas, o local que deveria ser o mais seguro. Em 2023, mais de metade dos femicídios ocorreram no contexto doméstico. É neste espaço de intimidade, muitas vezes invisível ao olhar público, que se concentra a face mais brutal da desigualdade.

Mas há outro espaço onde a violência também se manifesta e onde continua a ser menos reconhecida, o local de trabalho. Entre os setores onde esta realidade é mais evidente, a saúde ocupa um lugar particularmente perturbador. As mulheres representam a maioria dos profissionais de saúde em Portugal. É justamente nas profissões onde predominam que a violência laboral, física, verbal, psicológica ou sexual, encontra terreno fértil. As agressões por parte de utentes, familiares ou mesmo no seio das equipas são ainda encaradas como “parte do trabalho”, uma expressão que revela o grau de naturalização do fenómeno.

Os dados nacionais confirmam a inquietação. Em 2023, o sistema de notificação pública registou 1036 episódios de violência contra profissionais de saúde. Sabemos, contudo, que o número real é substancialmente maior, apenas um quarto das vítimas formaliza queixa. Em alguns hospitais portugueses, cerca de 40% dos profissionais relatam ter sido alvo de violência nos últimos meses. 80% das enfermeiras do Alentejo, de acordo com um estudo recente, viveram momentos de violência. São números que não podem ser ignorados.

A violência no setor da saúde é, também ela, uma questão de género. Não porque todas as vítimas sejam mulheres, mas porque as mulheres estão mais expostas em múltiplas frentes, estão mais presentes em funções de contacto direto, enfrentam mais frequentemente comportamentos abusivos por parte de utentes e, não raras vezes, enfrentam silêncios e constrangimentos dentro das próprias instituições. A resposta organizada continua aquém do necessário. A subnotificação é elevada, o estigma é real e a fadiga emocional instala-se lentamente até moldar a forma como cuidamos.

Não podemos deixar de olhar para estas outras vítimas, invisíveis na sua própria rotina profissional. Porque defender as mulheres é também reconhecer que o espaço de trabalho, mesmo aquele que existe para cuidar, pode ser palco de agressões, medos e perdas. Cada agressão sofrida por uma médica, enfermeira, técnica ou assistente é uma agressão sofrida por toda a comunidade que depende delas.

A violência não se combate apenas com leis ou campanhas. Combate-se com lucidez, com consciência e com a recusa firme de aceitar que isto “faz parte”. Hoje, mais do que nunca, é tempo de dar visibilidade a este problema. A violência contra as mulheres, em casa, na rua ou nos hospitais e centros de saúde, é um ataque direto à dignidade humana. Falar disso é o primeiro passo para a enfrentar.

Bastonário da Ordem dos Médicos

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