Bar aberto na saúde

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Semana após semana, reforça-se uma convicção que formei ao longo das últimas três décadas: o SNS foi gradualmente capturado por interesses corporativos e empresariais, transformando-se no palco daquele que considero ser o maior saque alguma vez cometido contra o Estado Social e o dinheiro público.

O primeiro sinal deste “bar aberto” na saúde surgiu para mim nos anos 90, quando comparava o percurso profissional de jovens licenciados de várias áreas. Em profissões como ensino, engenharia, arquitetura, gestão e tantas outras, via-se um crescimento contínuo e encorajador. O elevador social funcionava, a prosperidade parecia democratizar-se e os jovens começavam, finalmente, a poder comprar um apartamento, um carro simples, e proporcionar aos filhos condições dignas de estudo. Foram, de facto, bons tempos.

Mas havia uma exceção notória: os licenciados em medicina. Se na escola éramos colegas a seguir caminhos paralelos, na vida adulta tornou-se evidente que eles não usaram o elevador – entraram diretamente num foguetão. Em poucos anos de carreira, já conduziam Mercedes ou jeeps, construíam moradias e vestiam os filhos com as marcas mais caras.

Intrigado, comecei a ligar os pontos. Percebi desde logo que a corporação médica era extremamente eficaz a limitar a concorrência. Os cursos de medicina existiam apenas em Lisboa, Porto e Coimbra, e qualquer tentativa de ampliar a oferta era imediatamente travada pela Ordem dos Médicos. Funcionava a lógica básica do mercado: quanto menos oferta e mais controlada, maior o valor.

Depois surgiu o que chamo de indústrias do saque: baixas médicas fraudulentas, juntas médicas que facilitavam reformas antecipadas, prescrições seletivas de medicamentos que garantiam viagens paradisíacas oferecidas por farmacêuticas. Estas e outras práticas asseguravam rendimentos mensais avultados, sempre à custa do erário público.

Mas o pior ainda estava para vir. A entrada agressiva do setor privado ativou uma poderosa máquina de comunicação dedicada a descredibilizar a saúde pública, desviando utentes para as suas estruturas. Médicos e enfermeiros seguiram o rasto do dinheiro, acumulando funções em vários locais, o que fez disparar o absentismo no setor público para níveis escandalosos.

E, mesmo dentro do SNS, o saque continuou sem abrandar: cirurgias adicionais altamente lucrativas, a proliferação dos médicos tarefeiros, a inscrição fraudulenta de utentes imigrantes no sistema, ou a prescrição de medicamentos antidiabéticos usados para emagrecer. A lista parece inesgotável.

Este cenário de “bar aberto” que aos poucos se vai revelando pode ser apenas a superfície do problema. Com tanta fraude acumulada, receio que chegue o momento em que a torneira do orçamento da saúde terá inevitavelmente de ser fechada.

Professor catedrático

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