A aurora de Nova Iorque tem Quatro colunas de lodo E um furacão de pombas Que explode as águas podres..Federico García Llorca.Tem quase cem anos, mas ainda impressiona. Foi construído num prazo recorde de 13 meses, hoje inconcebível, e durante décadas foi o edifício mais alto do mundo. O rival que o destronaria em 1970 acabou arrasado por dois aviões numa manhã de Setembro de 2001, mas ele permanece, gigantesco e impassível, do alto dos seus 443 metros. O que se escreveu sobre o Empire State Building daria para fazer uma pilha com o seu tamanho, ou mais, mas entre milhares de textos há um que merece especial reflexão e destaque. A sua autora, Carol Willis, é fundadora, directora e curadora do Skyscraper Museum, de Nova Iorque (à letra, Museu dos Arranha-Céus), e o texto, primeiro saído em artigo e depois desenvolvido em livro, intitula-se Form Follow Finance: Skyscrapers and Skylines in New York and Chicago e foi alvo de tradução para francês, na preciosa colecção de livrinhos de arquitectura das Éditions B2, que a todos se recomenda..Historiadora de arquitectura, Carol Willis entende que, na génese dos arranha-céus norte-americanos existem duas unidades de tempo - o período 1890-1910 e o de 1920-1930 - e duas unidades de lugar, Nova Iorque e Chicago. E entende que os arranha-céus são edifícios sumamente funcionais, no sentido em que o seu tamanho não surge ao acaso nem é apenas produto da vaidade humana (como na história bíblica de Babel), estando ordenado ao cumprimento de um objectivo preciso, muito específico: o lucro..Louis Sullivan, arquitecto americano considerado o "pai dos arranha-céus" ou "pai do modernismo", desenvolveu um axioma famoso, "form follows function", "a forma segue a função", isto é, o desenho de um dado edifício ou objecto deve depender do propósito que serve: a forma de um prédio de habitação deve ser uma, a de um edifício de escritórios outra, a de um hospital outra ainda, e assim por diante. O funcionalismo absoluto impôs ainda que a arquitectura fosse despojada de decorações ou arrebiques que nada tivessem que ver com a função atribuída a cada obra edificada e, em 1908, o arquitecto austríaco Adolf Loos, que tinha trabalhado nos Estados Unidos, escreveu mesmo um ensaio célebre, Ornamento e Crime, proclamando que os elementos decorativos não só são supérfluos como constituem um verdadeiro "crime" para uma arquitectura límpida, funcional e sadia (falando em crimes, Loos foi também um consumado pedófilo, o que não vem agora ao caso)..Pegando no termo form follows function, Carol Willis dá-lhe nova configuração, dizendo antes form follows finance, isto é, os arranha-céus de Nova Iorque têm aquela aparência uniforme e estratosférica não porque o impusessem considerações funcionais, estéticas, arquitectónicas ou de gosto, mas pura e simplesmente devido aos motivos económicos e financeiros que levaram à erecção daquelas torres monumentais. À primeira vista, parece básico, trivial, pois, como é evidente, o interesse de qualquer especulador imobiliário é sempre construir mais e mais alto e por isso parece evidente que os arranha-céus são gigantescos para satisfazer o desejo de mais e mais lucro por parte de quem os construiu..As coisas, porém, são um pouco mais subtis e exigem devido enquadramento histórico. Entre 1920 e 1930, o imobiliário de Nova Iorque viveu um período febril, com o volume total das áreas para escritórios a passar de 6,9 para 10,4 milhões de metros quadrados (e mais 2,4 milhões erguidos em 1935, superada a fase mais aguda da Grande Depressão). O grande frenesi ocorreu em Midtown, sobretudo nas zonas adjacentes da Grand Central, em redor da 5.ª Avenida, da Madison e da Lexington, tendo os promotores do Empire State Building pensado em expandir a área dourada um pouco mais para sul. Os contratos para a construção foram assinados em Setembro de 1929, antes do crash bolsista, e, logo em Outubro, iniciaram-se os trabalhos de demolição do edifício aí existente, o monumental e luxuoso hotel Waldorf-Astoria (que tem, ele próprio, uma história curiosa: em finais do século XIX, dois primos rivais construíram hotéis separados, William Waldorf Astor fez o Waldorf e John Jacob Astor fez o Astoria, acabando os dois estabelecimentos por ser ligados através dum corredor, o "Beco do Pavão", daí surgindo o Waldorf-Astoria, o maior hotel do mundo na época)..Após a demolição do histórico hotel, começou a obra titânica, com 3500 operários a labutarem em simultâneo para erguer um piso por dia (!). Em Março de 1931, terminava a construção do edifício mais alto do planeta, 45 dias antes do calendário previsto e a custo menor do que orçamentado. No 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, a cerimónia de inauguração contou com a presença do governador, Franklin Delano Roosevelt, futuro presidente da nação, do mayor, Jimmy Walker, e de Alfred E. Smith, presidente da Empire State Corporation..Existiam então dois tipos de grandes edifícios: os que serviam de sede social duma empresa, cuja dimensão quilométrica estava associada a razões de prestígio de um capitalista ou afirmação de poder corporativo (como o Woolworth Building, as sedes da Seagram ou do Chase Manhattan Bank); e os chamados "prédios de rendimento", cuja escala era ditada por razão especulativa e financeira..A maioria dos arranha-céus construídos em Nova Iorque nas décadas de 20 e 30 eram prédios de rendimento: em 1932, dos 36 imóveis mais altos da cidade, só 19 serviam como sedes de empresas, destinando-se todos os outros a dar lucro, ora como hotéis ora como edifícios de arrendamento para escritórios. Foi então que surgiu o famoso dito que "o negócio de Nova Iorque é o seu imobiliário", no sentido em que a cidade não tinha indústrias nem produzia riqueza alguma que não fosse a da especulação sobre a sua própria terra..Era na categoria "prédio de rendimento" que se inseria o Empire State Building, edificado para dar lucro, de acordo com um cálculo preciso, feito ao milímetro, pois a ideia de maximizar os proventos, ao contrário do que ainda julgam muitos patos-bravos, não decorre necessariamente do custo de construção mais baixo ou do uso de materiais de terceira categoria, mas antes da noção de retorno do investimento. Já em 1914, em The Commercial Problem in Building, Cecil Evers salientara, e bem, que "a melhor prova do valor de um edifício é a sua capacidade económica, não o seu custo". Havia, aliás, estimativas precisas sobre os lucros expectáveis em cada tipo de edifício: um prédio de 63 pisos geraria 10,25% de lucro, um de 50 não daria mais do que 9,87% de rendimento; todavia, não compensava necessariamente edificar mais e mais alto, já que um prédio de 75 andares, por exemplo, só daria 10,06% de lucro (menos do que um de 60 pisos), devido aos custos suplementares com elevadores e com a estrutura para os suportar, etc. O Empire State foi alto, gigantesco, não porque essa fosse a solução mais rentável, mas porque assim o impôs o elevado preço do terreno onde foi erguido, mais de 2 mil dólares/m2..A forma padronizada dos edifícios nova-iorquinos que ainda hoje caracteriza a skyline de Manhattan surgia como resultado óbvio das restrições impostas pela lei de 1916 sobre a ocupação dos solos: pese algumas diferenças ornamentais, todos têm uma base imensa com vários patamares em degraus, seguida de uma torre em flecha até lá acima. A paisagem urbana de NYC não resulta, pois, da acção de arquitectos e engenheiros, sendo, sim, produto de uma conjugação entre limites construtivos e lógica económica. Trata-se, na síntese de Carol Willis, de uma arquitectura comercial, apenas isso. O afã de que o Empire fosse o edifício mais alto do mundo não era apenas uma bravata dos construtores, antes obedecendo, uma vez mais, a propósito económico: ter um chamariz publicitário que permitisse cobrar entradas para o miradouro colocado no topo, uma fonte de receita essencial nos tempos da Grande Depressão, em que não foi fácil arrendar os escritórios dos andares de baixo, levando o edifício a ser jocosamente apelidado de "Empty State Building". As expectativas iniciais apontavam para um lucro da ordem dos 12,6%, mas pouco depois já se pensava apenas em obter 10% de proventos, na melhor das hipóteses. Além dos efeitos da crise económica, o Empire era um edifício caro, de "classe A", em que quase todas as divisões tinham luz solar directa e os escritórios individuais possuíam janelas de metro e meio de largura por dois metros de altura. Era, além disso, uma estrutura desmesurada, maior do que muitas cidades, com capacidade para albergar 80 mil seres humanos. E, apesar de estar a meio caminho entre as principais gares ferroviárias, e ao pé de numerosas estações de metro e linhas de superfície, não estava sobre nenhuma delas, ou seja, tinha uma localização interessante, mas não excepcional. Para mais, a 5.ª Avenida, entre a 23.ª e a 42.ª ruas, não era um quarteirão de escritórios, mas uma zona comercial com boutiques da moda e prédios de altura limitada. A envolvente do Empire, do ponto de vista da maximização do lucro imobiliário, não era ideal, mas com o passar dos anos fez o seu caminho e foi alvo de diversas operações especulativas, dando muito dinheiro a ganhar a muita gente..Podemos não o considerar "bonito", ao contrário do icónico Chrysler, o mais belo de todos, e o Empire até nos pode parecer algo pesadão e sem graça, mas a simplicidade das suas formas e o seu isolamento esplêndido são ainda hoje impressionantes. Passado quase um século sobre a construção, o Empire State Building permanece uma realização humana única, que deslumbra pela desmesura. Serviu de ancoradouro a zepelins (projecto depois abandonado), foi alvo do embate de um bombardeiro B-25 em 1945, palco de mais de 30 suicídios, entrou em cerca de 250 séries televisivas e filmes, com King Kong à cabeça. E, no entanto, poucos sabem quem foi o seu arquitecto, quem lhe traçou as formas, quem foi o autor daquela massa de pedra. O motivo é simples: o que ali vemos, majestoso e imponente, não é um edifício, mas um negócio. E o que explica Manhattan não é a pulsão humana para chegar aos céus ou o desejo de fazer uma arquitectura arrojada e monumental, mas apenas, e tão-só, o lucro e o crédito, o crédito fornecido pelas caixas de aforro, pelas companhias seguradoras e pelas bond houses. Podemos até gostar do resultado, mas importa ter presente o propósito que o animou: não foi o belo ou o estético, nem o sonho de chegar mais alto, mas o lucro e o dólar, sempre o dólar, biliões de dólares..Resta-nos saber se não é sempre assim, ou quase sempre. Em Design e Crime (E Outras Diatribes), um livro excepcional publicado entre nós por um editor excepcional, Vasco Santos, o crítico Hal Foster retoma o ensaio de Adolf Loos para desferir um ataque certeiro a alguns dos principais nomes da arquitectura contemporânea, como Frank Gehry e Rem Koolhaas. De facto, as suas assinaturas, e as da maioria dos arquitectos de todo o mundo, servem sobretudo para embelezar ou camuflar operações mercantis de grande alcance. Dão o verniz da "estética" e a pátina do "bom gosto" a coisas que são, na essência, puras obras especulativas, tão-só norteadas pela avidez do ganho e pela ganância do lucro. A arquitectura tornou-se um dos principais instrumentos do capitalismo global e, num jogo de espelhos de que poucos falam, o seu poder é imenso, pois surge dissimulado sob o mais alto snobismo, revestido de uma aura indiscutível e tirânica, inacessível ao escrutínio democrático dos cidadãos comuns, tidos por iletrados e sem gosto. Tudo é figurado, ademais, como se nada tivesse que ver com o vil metal, e apresentado como pura criação artística, etérea e puríssima, quando, na realidade, o motor e o fim são totalmente do domínio do material, do mais capitalista que há. Os arquitectos deveriam meditar um pouco nisto, sobre qual o sentido da sua profissão nestes tempos penumbrosos. E os cidadãos também, pois deles são as cidades..Historiador. Escreve segundo a antiga ortografia.