A audição da criança, prevista no art. 1906.º, n.º 9, do Código Civil e densificada nos arts. 4.º e 5.º do RGPTC, é um direito de participação da criança e um meio de obtenção de elementos para a decisão judicial. Não é, porém, um pressuposto formal automático de homologação de acordos parentais, nem um ato que caiba, por iniciativa própria, ao Ministério Público (MP) realizar fora do quadro jurisdicional. Quando os progenitores apresentam um acordo completo e equilibrado sobre o exercício das responsabilidades parentais, o princípio da celeridade e a lógica de consensualização que informam o processo tutelar cível impõem a sua pronta homologação, salvo indícios concretos de desconformidade com o superior interesse da criança. Fazer depender, por rotina, essa homologação de uma audição prévia conduzida pelo MP desvirtua o modelo legal, cria entropia procedimental e expõe a criança a intervenções desnecessárias. O RGPTC consagra, de um lado, o direito da criança a ser ouvida “tendo em conta a sua idade e maturidade” (arts. 4.º e 5.º) e, de outro, confere ao juiz a direção do ato e a ponderação sobre a sua oportunidade, podendo dispensá-lo quando manifestamente contrário aos interesses da criança ou inútil para a decisão. A audição é, pois, um ato jurisdicional dirigido ao esclarecimento do tribunal, no qual o MP tem intervenção funcional, mas não titularidade própria para o substituir ou antecipar. A interpretação sistemática destes preceitos conduz a um critério simples: há lugar a audição quando ela acrescenta valor decisório ou protetor; não há quando apenas retarda, sem benefício, a estabilização de um regime consensual que prima facie salvaguarda o melhor interesse do menor. É precisamente nos casos de acordo dos pais quanto á regulação das responsabilidades parentais que a audição desencadeada pelo MP se revela disfuncional. Primeiro, porque trava a execução imediata do acordo, contrariando os princípios da economia e celeridade processual que o legislador quis afirmar no domínio tutelar cível. Segundo, porque o decurso do tempo até à realização da diligência tende a reabrir frentes de conflito, transformando um processo consensual em litigioso por desgaste e frustração, com impacto direto na previsibilidade e segurança da vida da criança. Terceiro, porque inverte indevidamente o propósito da audição: a criança é chamada a exprimir perceções e preferências relevantes, não a decidir quem detém condições para a ter a cargo ou quando; essa decisão cabe, primacialmente, aos pais, e, em sede de controlo, ao tribunal, segundo o critério do superior interesse da criança. O papel constitucional e legal do MP - promover a legalidade e defender os interesses dos menores - realiza-se, nestes casos, através da emissão de parecer sobre a conformidade do acordo e da sinalização de eventuais “red flags” objetivas (p. ex., indícios de risco, desproporções ostensivas no regime de convívios, cláusulas que comprometam necessidades básicas, domicílios instáveis ou violência doméstica). Perante a ausência de tais sinais, a atuação conforme ao sistema é fomentar a imediata homologação, e não criar um “pré-requisito” de audição que a lei não impõe. Se, ao invés, surgirem elementos novos ou contraditórios após a homologação, o ordenamento oferece mecanismos adequados de revisão do regime (v.g., alteração superveniente das circunstâncias), sem transformar a audição numa barreira preventiva automática à eficácia do acordo a que os pais chegaram. Note-se, ainda, que o próprio ordenamento prevê vias desjudicializadas em contexto de mútuo consentimento (como no divórcio perante a conservatória), onde a lógica é precisamente a de validar soluções parentais acordadas, intervindo jurisdicionalmente apenas quando necessário. Constitui um entorpecimento nesta matéria, a criação de uma práxis em que a homologação dos acordos de regulação de responsabilidades parentais dependem da audição prévia conduzida pelo MP em contexto de divórcio perante a conservatória (assim como na via judicial), quando nada indicie prejuízo para o menor. Em síntese: quando existe acordo parental completo e equilibrado, a audição da criança deve ser um instrumento disponível, acionado quando útil ou necessário, e não um ritual obrigatório promovido pelo MP que adie a homologação. A tutela efetiva do superior interesse da criança exige decisões rápidas, previsíveis e proporcionais: homologar já; ouvir apenas se e quando a audição acrescente proteção real. Tudo o mais converte um direito de participação num entrave processual, sem ganho material para a criança e com custo elevado na estabilidade da sua vida. AdvogadoSócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados