Ataque ao coração do Estado de Direito

Publicado a

Num Estado de Direito democrático, a figura do advogado transcende a mera representação de um cliente; a mesma constitui um pilar essencial da própria administração da justiça e da defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e dos legítimos interesses das empresas. A independência e as imunidades conferidas à advocacia não são privilégios de uma classe profissional, mas sim salvaguardas da própria democracia. Quando um advogado é ameaçado ou intimidado pelo exercício legítimo da sua profissão, é o direito de defesa dos cidadãos e empresas que é posto em xeque. Vários episódios ilustram de forma paradigmática a tensão que pode surgir entre o exercício do mandato forense e a atuação da Administração Pública. Num exemplo recente, um advogado, na defesa dos interesses da sua constituinte, uma empresa, deduziu um incidente de suspeição contra um agente da administração pública, um mecanismo legal previsto no Código do Procedimento Administrativo para garantir a imparcialidade da atuação da Administração Pública. Em resposta, a entidade pública em causa, acedeu patrocinar, com fundos públicos, a apresentação de uma queixa-crime contra esse mesmo advogado em representação do seu agente. Este ato constitui uma flagrante tentativa de reprimir o exercício de direitos por parte dos cidadãos e empresas e uma perversão completa do papel do Estado na relação com os cidadãos e o tecido empresarial. Estes maus exemplos, há uns tempos esporádicos, têm-se vindo paradoxalmente a generalizar nos últimos anos, naquilo que constitui uma entorse à natural evolução e crescente maturidade que se espera de um Estado de Direito democrático com 50 anos de vivência em democracia, em que a Administração Pública deve estar preparada para reconhecer aos cidadãos e empresas o direito de se defenderem e exercerem o contraditório de forma efetiva. As ameaças de processos-crime e queixas disciplinares contra advogados pela prática profissional e pelo exercício de prerrogativas previstas na lei, em nome dos seus representados, representa um ataque direto às fundações do Estado de Direito. A Constituição da República Portuguesa é clara ao assegurar aos advogados "as imunidades necessárias ao exercício do mandato", considerando o patrocínio forense como "elemento essencial à administração da justiça".

Esta proteção constitucional é densificada por um conjunto de normas que blindam a atuação do advogado, que se quer livre e independente. A tentativa de punir criminal e/ou disciplinarmente a conduta de um mandatário por ter utilizado um mecanismo legal para questionar a imparcialidade de um agente da Administração Pública é, por isso, inadmissível e insuportável, transformando o aparelho de Estado numa arma de assédio judicial, uma prática conhecida internacionalmente como SLAPP (Strategic Lawsuit Against Public Participation), cujo objetivo é silenciar e intimidar quem ousa escrutinar a legalidade da atuação do agente público. Trata-se, na verdade, de uma completa subversão dos princípios democráticos, numa sociedade moderna em que cidadãos e empresas exercem os seus direitos de defesa. Acresce que, a utilização de fundos públicos para patrocinar queixas de agentes da Administração Pública contra advogados que representam contribuintes levanta, adicionalmente, sérias questões sobre a legalidade e o interesse público de tal despesa, podendo configurar um uso indevido de dinheiros públicos para fins não permitidos, potencialmente censurável do ponto de vista criminal e passível de escrutínio pelo Tribunal de Contas e pela tutela governamental. A independência da advocacia é a última fronteira da defesa dos cidadãos e empresas perante o poder, seja ele público ou privado. Permitir que advogados sejam intimidados ou coagidos a silenciarem por exercerem o seu múnus é abrir um precedente perigoso que enfraquece a democracia e a justiça. A coragem de um causídico que invoca as prerrogativas profissionais que lhe assistem, não em defesa própria, mas na "defesa da legalidade e dos legítimos interesses do seu representado, é um sinal da importância vital de um sistema de justiça livre e de uma advocacia destemida e independente, sem a qual os direitos dos cidadãos se tornam caricaturas. A defesa destas imunidades e garantias da advocacia é a defesa do direito de cada um de nós a uma justiça justa e imparcial.

Advogado, sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

Diário de Notícias
www.dn.pt