As vozes do silêncio
Há anos, num café hoje já extinto, vi uma rapariga ganzada a falar com um pastel de nata. Este estava quietinho, muito caladinho, tentando não ser comido, enquanto ela lhe ia dizendo coisas trôpegas e metafísicas, como "Deus, para mim, é só uma força que une esta cena toda". Que a Força esteja com ela, agora e para sempre, é o nosso sincero desejo.
Talvez seja parvoíce minha, mas gosto de pensar que há Criação e há Natureza, mesmo considerando que a história do criacionismo bíblico não passa de ficção literária, ainda que bela e potente. Se, como dizem os cientistas, tudo começou com o Big Bang, a questão, pois então, é a de saber o que aconteceu antes desse tal Big Bang, o que precedeu e antecedeu a monumental explosão cósmica. A dúvida provavelmente é estúpida, pois se foi o Big Bang que criou o tempo, não deveremos falar de um "antes" do Big Bang, pois o "antes" e o "depois" são categorias cronológicas que só podem ser aplicadas à História, isto é, que pressupõem que o tempo exista. Porém, à nossa imaginação, muito formatada pela experiência e pela vivência do tempo, repugna a ideia de uma ausência total de um "antes" cronológico: para uns, esse "antes" corresponde ao divino criador, ao Espírito de Deus pairando sobre as águas, como se diz logo na abertura do Génesis; para outros, antes do Big Bang existiria tão-só o silêncio, um imenso e avassalador silêncio. E, logo que Deus se pôs a falar, começou o mundo.
Lembrei-me destas tontarias por causa de um livrinho sobre a história do silêncio, que se chama precisamente, claro está, Histoire du silence - de la Renaissance à nos jours (Flammarion, 2018), que comprei e li a conselho de um grande e mui douto amigo, José Manuel Sobral. Do autor, Alain Corbin, que tem obras extraordinárias sobre o lazer e os tempos livres, sobre a história da chuva ou sobre o nascimento da sexologia no tempo das Luzes, já tinha lido com grande agrado e proveito Les cloches de la terre. Paysage sonore et culture sensible dans les campagnes au XIXe siècle, o qual, como o nome indica, fala da paisagem sonora dos campos e da importância fulcral dos sinos das aldeias no pontuar dos ritmos dos trabalhos rurais ou no chamamento dos fiéis à igreja ou às orações da fé, como a daqueles dois camponeses que Millet retratou em Angelus, de 1858, uma das mais espantosas evocações do silêncio que a arte ocidental alguma vez produziu. Interessou-me esse tema dos "sons da terra" por causa da célebre querela da "portaria dos sinos", ao tempo da Ditadura Militar, antes sequer do Estado Novo. Tudo eclodiu em 1929 por causa de um edital do governador civil de Évora, o tenente José Durão Paias, que disciplinava o uso dos badalos a horas nocturnas, e que foi de imediato contestado pelo arcebispo da cidade, D. Manuel Mendes da Conceição Santos. No seio do governo liderado pelo general Domingos Oliveira, abriu-se então uma luta agreste, desde há muito anunciada, entre alguns ministros republicanos, apegados à Lei da Separação, e os jovens turcos católicos, como Oliveira Salazar e Mário de Figueiredo, favoráveis à Igreja. Um pormenor curiosíssimo, contado por Marcello Caetano: Salazar era ainda, e apenas, titular da pasta das Finanças e, numa bela manhã, não reparando que um funcionário mais diligente puxara em excesso o lustro ao soalho, entrou de rompante pelo ministério adentro e estatelou-se ao comprido no chão traiçoeiro, fracturando a perna. Desconhece-se o que terá sucedido ao coitado do funcionário, mas Salazar, esse, passaria larga temporada em convalescença no Hospital da Ordem Terceira, ao Chiado, com reuniões de conselho de ministros aí realizadas, o que dá bem a noção do peso que o "mago das finanças" já então detinha no governo - e no país. À conta dos sinos de Évora, cairia o executivo de Domingos Oliveira, e entrou novo ministério, com Salazar à cabeça, que nela ficou por muitos e muitos anos. Bastaria este episódio para nos elucidar sobre a importância dos sons e dos silêncios na vida política. É que, como já dizia el-rei D. João II, e bem, há tempos de usar de coruja e tempos de voar como o falcão.
Falei há pouco do silêncio de Deus, antes de o verbo se fazer mundo, pois é também através do silêncio que muitos procuram alcançar o transcendente. Se a religião constitui, em si mesma, um fenómeno da palavra - e pela palavra -, não deixa de ser surpreendente que muitos a tenham praticado em total mutismo. Como refere Alain Corbin, desde o monasticismo católico ao hinduísmo e ao taoísmo, passando pelos budistas e pelos cristãos ortodoxos, as várias espiritualidades exaltaram o valor do silêncio, agora também em voga no ioga, nos delírios da New Age e nos que se aproximam perigosamente da autoajuda, como o norueguês Erling Kagge, com Silêncio na Era do Ruído. Na tradição monástica do Ocidente, desenvolveu-se a partir do século XVI, mas recolhendo contributos que vinham lá de muito atrás (v.g., os estóicos da Antiguidade), uma ars meditandi, uma arte de concentração mental, a que hoje chamaríamos mindfulness ou coisa que o valha, e que dialogava com as mais altas transcendências sem dizer uma só palavra. Ou, melhor dito, dialogando com o divino apenas com o espírito e a mente, numa "oração interior" (oratio interior) jamais aflorada aos lábios.
Em 1555, o jesuíta Baltasar Álvarez, que foi director espiritual e confessor de Santa Teresa de Ávila, a quem punia com severidade, castigando-a por ser demasiado frívola (!), publicou um Tratado de la oración de silencio, em que afirmava que é através do silêncio que a voz de Deus se revela. A obra teria uma influência profunda na literatura devocional do seu tempo e dos séculos vindouros, marcando o magistério de pregadores influencers como Louis Lallemant, Jean-Joseph Surin, René de Maumigny, o reaccionário Jacques-Bénigne Bossuet, o redentorista Alphonsus Maria de Liguori ou o jesuíta Augustin Poulain. Por seu turno, o dominicano Luis de Granada, confessor do nosso D. João III (e sepultado em Lisboa, na Igreja de São Domingos, a escassos metros da drogaria homónima), advogou um método de oração interior que influenciou poderosamente Carlos Borromeu, arcebispo de Milão, e Filipe Néri, fundador dos oratorianos. Consistia tal método, na síntese de Alain Corbin, em criar um "quadro interior, silencioso, com um qualquer trecho da vida de Cristo" e, depois, estabelecer uma conversação entre o pecador que reza e a cena colocada diante dos seus olhos, em diálogo não-verbal com todas as personagens em presença. Se bem percebi, trata-se de um exercício não diferente do usado em muitas práticas de meditação: imaginamos um trecho bíblico e ocupamos o espírito, por inteiro, em concentração absoluta, a falar interiormente ora com São Pedro, se for o caso, ora com os discípulos de Emaús, ora com Maria Madalena. Através desse treino mental ou espiritual, garantia Luis de Granada, alcançaremos paulatinamente um hábito de "movimentos silenciosos» que impregnará todos os nossos gestos e os nossos actos, santificando-nos no quotidiano, sem que os outros se apercebam disso.
Estes são apenas alguns exemplos da tradição mística ocidental, a que se poderiam juntar o de Inácio de Loiola, que dedicava sete horas por dia à oração interior, não dizendo palavra à hora das refeições, só observando e escutando os seus confrades, e sobretudo o da regra dos cartuxos, em que o silêncio do meio exterior é tão-só uma forma de alcançar plenamente o silêncio interior, tanto do espírito (mens) como do coração (cor). Tempo de Silêncio é justamente o título do livro que Patrick Leigh Fermor dedicou ao périplo que fez pelos mosteiros e abadias de França e da Capadócia, como O Grande Silêncio é o título do assombroso documentário que Philip Gröning realizou em 2015 na Grande Chartreuse.
No fundo, entre a vita activa e a vita contemplativa de que falou Hannah Arendt (ainda que num contexto bem diferente), desenham-se duas formas de chegar e de servir a Deus: a de Marta, laboriosa e operosa, certamente ruidosa; e a de Maria, serena e observadora, silente. No relato lucano da Anunciação, há, aliás, uma frase misteriosa e assombrosa, com a qual termina o diálogo entre a Virgem e o anjo Gabriel. Após Maria lhe ter dito, obediente, "Seja como tu dizes", o Evangelho de Lucas acrescenta: "E o anjo retirou-se" (Lc 1, 38). Maria ficou, pois, entregue à solidão de si mesma, em absoluto e esmagador silêncio, ou "a sós, com Deus", tal qual sucederia, séculos depois, com Thomas More, nas vésperas de ser decapitado na Torre de Londres; ou, se quisermos, Maria ficou entregue à solitude of the self, a "solidão do eu" que é timbre e sina de todas as mulheres, como o proclamou a sufragista norte-americana Elizabeth Cady Stanton num célebre discurso de 1892, que há um par de anos, numa tradução canhestra, verti para português e publiquei no blogue Malomil.
Talvez tenha havido depois uma "dessacralização do silêncio", como lhe chama Corbin, ainda que me pareça a mim, muito ignaro, que a exaltação do mutismo e da gravitas, no campo laico, terá surgido por si própria, sem necessária ligação aos ensinamentos da Igreja. Elegeu-se então o silêncio como virtude dos homens públicos e dos governantes, como sinónimo de bom senso e de ponderação, como sinal de sabedoria e profundidade, como modelo moral de conduta e de elevação do espírito (ao abrigo do qual se acobertam, não raras vezes, muitos cobardes e oportunistas). Na corte bizantina, havia inclusive um "silenciador", um funcionário encarregado de garantir que as vozes não se elevavam e altercavam em excesso, para que os ritos e as liturgias de poder se processassem com a dignitas inerente ao silêncio, numa encenação em que os gestos e os não-ditos eram tão ou mais importantes do que o verbo falado. Tudo medido ao milímetro para que o imperador sobressaísse - e sobressaísse quando tomava e usava da palavra -, exactamente da mesma forma em que, nos Evangelhos, as figuras de Maria e sobretudo José são relegadas para uma esfera de silêncio, para que Cristo se destaque e ocupe por inteiro o fulcro da narrativa. A par disso, os manuais de civilidade e de etiqueta (de que é o exemplo O Livro do Cortesão, de Baldassare Castiglione, de 1528, há pouco publicado entre nós pela Gulbenkian) ou livros de conselhos aos príncipes enalteciam a prudência dos calados, a cortesia dos que não interrompiam os outros e que sabiam aguardar o momento certo para abrir a boca e botar faladura.
Em contraste, o ruído e a verbosidade em excesso, o "falar pelos cotovelos", associados a um sem-fim de provérbios e adágios populares ("pela boca morre o peixe", etc.) passaram a estar associados à frivolidade, à espontaneidade não pensada, não amadurecida. Para o poder, político ou eclesial, a dignidade do silêncio; para o povo, o barulho e a festa. Quando hoje nos queixamos, e bem, do excessivo ruído das cidades, dos carros e dos aviões, deveremos pensar que, durante séculos, a paisagem sonora das nossas urbes foi muito mais ruidosa do que agora. O silêncio, em si mesmo, não era considerado um valor essencial à saúde do corpo e do espírito e, na ausência de medidas de disciplina e controlo do ruído, as ruas das cidades eram uma confusão babélica, com os gritos dos pregoeiros, os berros e as vozes das gentes, o bramir dos animais, o furor das fabriquetas em laboração contínua. Para os saudosistas da "tranquilidade" de outrora, convém lembrar que a vida era toda passada na rua, sobretudo nos bairros populares, que o conceito de domesticidade era muito diferente do de agora, que no centro das cidades existiam indústrias, feiras, mercados de gado a céu aberto, espectáculos de rua, músicos e saltimbancos, pregadores de toda a espécie. Em Paris, no século XIX, acumularam-se as queixas contra os padeiros que, indiferentes ao sossego dos vizinhos, teimavam em cantar aos altos berros enquanto amassavam o pão e o fotógrafo Nadar lançaria uma campanha contra o barulho ensurdecedor dos sinos dos campanários, a tocarem a toda a hora do dia ou da noite. Assim, quando lembramos o silêncio do passado, em contraste com a azáfama ruidosa dos nossos dias, estamos a pensar no campo, não na cidade; simplesmente, os campos da actualidade são tão ou mais silenciosos do que os campos de há cem ou duzentos anos, até porque se encontram hoje muito mais despovoados. Ou seja, o que torna uma paisagem silenciosa ou repousante não é a apenas ausência de ruído, mas sobretudo a ausência de pessoas. O ser humano, por natureza, é um animal gregário e barulhento e, onde existirem humanos, sempre haverá muito som. Por isso, a questão do silêncio e do ruído talvez não deva ser colocada como uma disputa entre passado vs. presente, ou sequer entre campo vs. cidade, mas sim, e muito mais, entre ausência ou presença de seres humanos. É justamente por isso que, na ausência de pessoas, associamos o deserto ao silêncio, a um silêncio majestoso e soberbo, o que talvez nos permita concluir que a experiência do silêncio não é somente auditiva, mas também, ou sobretudo, visual. Numa galeria de pintura, os quadros são todos mudos, mas nuns encontramos ruído, noutros quietude, pois o som não se encontra nas telas, mas no que nelas vimos (quando pintou Os Comedores de Batata, em 1885, Van Gogh quis transmitir-nos, acima de tudo, uma sensação olfactiva, para que conseguíssemos sentir o odor a ranço e a banha frita de uma mesa de camponeses pobres).
Só aos poucos, lentamente, é que o direito ao silêncio foi sendo protegido pelas autoridades sanitárias, com Portugal, como sempre, a constituir um péssimo exemplo nesta matéria, ontem como hoje: enquanto na generalidade das ferrovias europeias se reserva o uso de telemóveis a espaços próprios nos comboios, entre nós tudo se cala e consente - música a bombar ao máximo, vídeos com graçolas idiotas, conversas aos gritos e em alta voz, a orgia dos smartphones. Nos alvores do século XX, o sociólogo alemão George Simmel anotava, com surpresa, que os comboios do seu tempo eram um lugar de quietude e sossego, em contraste com as viagens das décadas anteriores, em que era suposto os passageiros das carruagens confraternizarem entre si em ruidosas cavaqueiras. Ou seja, em termos de sonoridade ferroviária, Portugal está ainda no século XIX, com cem ou mais anos de atraso em relação aos nossos congéneres europeus.
Tendemos a confundir o silêncio com a ausência de som ou ruído, quando ele é também, ou principalmente, ausência de movimento, moderação nos gestos e nas atitudes. É por isso que, paradoxalmente, ou talvez não, há filmes mudos muitíssimo ruidosos (v.g., a cena da escadaria no Couraçado Potemkine ou o King Kong de 1933) e filmes sonoros que primam pelo silêncio (todos os de Clint Eastwood). Poderemos também dizer, sem forçar a nota, que, seja qual for o papel que desempenhem, há actores que se distinguem pelo ruído que irradiam, sem sequer abrirem a boca (v.g., Jack Nicholson, Joe Pesci, Leonard DiCaprio), enquanto outros se caracterizam pelo silêncio que deles emana (v.g., Morgan Freeman, Robert Redford, Paul Newman). Dualidade que se estende à pintura, com o ruído patente nas telas de Caravaggio, de Artemisia ou de Delacroix, e o silêncio explorado por Johannes Vermeer ou por Edward Hopper. Os paisagistas são, em regra, mais propícios ao silêncio, mas alguns distinguem-se pelo barulho tremendo que brota das suas telas, como em muitas das cenas marítimas de Turner ou noutras pinturas românticas. Só um génio atormentado como Edvard Munch foi capaz de criar um quadro que é o retrato de um grito e, ao mesmo tempo, uma perturbante alegoria do silêncio. E, na fotografia, há arrepiantes imagens de silêncio e ausência, como as de Bedrooms of the Fallen, de Ashley Gilbertson, de 2007, que mostra os quartos vazios, nas casas dos pais, dos soldados mortos no Iraque e no Afeganistão; ou as de Spencer Ostrander, que acompanham o recentíssimo e avassalador livro de Paul Auster, Bloodbath Nation, fotografias dos locais que serviram de palco a alguns dos massacres em que a América é fértil.
Ruído e silêncio. Será possível afirmar, a traços largos, que essa polaridade acompanha o pensamento político-filosófico dos últimos séculos: quando Heidegger criticava a "tagarelice" contemporânea, dizendo que a "luz do público obscurece tudo", estava, no fundo, a exprimir um sentimento contra a modernidade e contra a defesa kantiana das Luzes. Ou seja, e numa dicotomia algo simplista, enquanto o progressismo está do lado do ruído e da fala, o conservadorismo defende o silêncio e a escuta. Desde logo, porque a apologia do silêncio tem conotações ruralistas e nostálgicas, por vezes reaccionárias, e é igualmente associada à ideia de que o poder e o Estado também têm direito aos seus silêncios e segredos, tal como defendida pelos partidários da raison d"État ou pelos teóricos do arcana imperii. Formado e forjado na tradição de silêncio da Igreja, Salazar cultivou a "retórica da invisibilidade», na expressão de José Gil, uma arte de saber durar na política situada nos antípodas das estridências de Hitler ou de Mussolini. De resto, basta ouvirmos Donald Trump aos gritos num microfone ou as fanfarronices de Bolsonaro para percebermos que eles nada têm a ver com a tradição do conservadorismo político e com o seu apreço pela contenção e pela reserva, pelo silêncio próprio dos cautos.
Durante a pandemia e os confinamentos, vivemos uma experiência radical e forçada de silenciamento, que alguns tontos tomaram por autoritária. No coração de Lisboa chegaram a ouvir-se os galos, cantando ao raiar das madrugadas, e, de súbito, a cidade foi convertida em campo, num espaço rural sui generis, uma fantasmagoria delirante, sem carros nem atropelos. Depois, logo a seguir, uma experiência radical de ruído, a pior e a mais sonora de todas, a da guerra.
O tempo é agora, parece, de líderes pouco estridentes, mais ponderados e moderados, os "paizinhos centristas" (centrist dads) de que falava há dias o colunista Janan Ganesh nas páginas do Financial Times, dando os exemplos de Joe Biden, Macron, Olaf Scholz, Ursula von der Leyen ou de Mark Rutte, e até em parte Sunak, sobretudo no confronto com a sua inenarrável antecessora. Na verdade, é possível, até provável, que Trump, Putin e Xi Jinping tenham sido e estejam a ser a "vacina" de que as democracias precisavam, sobretudo para perceberem que têm de se proteger de forma mais atenta e actuante, ao invés de fazerem negócios com ditadores e julgarem que por essa via conseguem domesticá-los. Há quem alimente ainda a esperança de que, dentro de pouco tempo, tudo poderá voltar ao "normal" com a Rússia e com a China. A realidade, porém, é outra, mais agreste e perturbante: a ferida aberta e a confiança quebradas foram tais, e de tal forma ruidosas, que demorarão anos, muitos anos, a sarar (isto no melhor dos cenários, porque o pior é o de um confronto directo entre as potências mundiais, hoje mais próximo e patente do que há uns dois ou três meses).
O ruído faz parte de nós, muito mais do que o silêncio. Transportamo-lo connosco, a toda a hora do dia, carregamo-lo dentro de nós, gostemos ou não do barulho. Não sei como raciocinam os outros animais, mas nós, mesmo quando estamos calados, pensamos através de palavras, conversamos connosco próprios através de longos diálogos travados no interior da cabeça. Por vezes, acorrem-nos ao espírito as falas de outras pessoas, muitas das quais já mortas, mas cujo timbre ou a entoação de voz ainda conseguimos recordar - ou que, em certos casos, somos incapazes de esquecer.
Talvez a vida possa ser vista como um longo caminhar em direcção ao silêncio: dos berros que são prova de vida à nascença, prolongados pela infância fora, passando pelos gritinhos da adolescência, a vozearia da idade adulta, até ao emudecer do entardecer e, depois, the rest is silence, como se diz no Hamlet. Na velhice, adquirimos capacidade profética quando já não precisamos dela, pois o futuro adivinhado nunca será o nosso, nem nosso.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.