As raizes da (in)decência
Sem surpresa, na sua tomada de posse, Trump mostrou como o farol dos EUA mudou de tonalidade e função. Aboliu-se a pretendida luz exemplar da liberdade, disseminada com intensidade prosélita pelo mundo. A luz de Trump será o holofote de vigilância da fortaleza-América, hostil a tudo o que é estrangeiro, palavra usada, até, como sinónimo de criminoso. Na verdade, o mundo de Trump continua a ser o espelho da América. Um país há muito dominado pelo individualismo desenfreado. Um campo de batalha entre “vencedores e falhados” (winners and losers). É por isso que recuso o superficial consenso gerado nos círculos europeus, considerando Trump como o crepúsculo da “decência” representada por Biden, em cuja despedida muitos europeus choraram como órfãos.
Como aqui escrevi (DN, 17/01/25), o brutalismo de Trump é uma clarificação daquilo que tem sido a política geral dos EUA, com destaque para a externa, sobretudo a partir do momento em que as instituições da democracia representativa foram totalmente capturadas pelos grandes e até pequenos interesses. O Congresso americano é eleito pelo povo, mas é mantido e alimentado pelos grupos de pressão, que, como escreveu John Rawls em 1999, tratam o Capitólio como um mercado onde as leis são compradas e vendidas. Só por ingenuidade se pode dar crédito a Biden, quando de saída alertou para o risco de oligarquia com Trump. Na verdade, pelo menos desde Reagan, os EUA iniciaram o caminho sem recuo para se transformarem numa plutocracia, um governo ao serviço dos ricos. Basta olhar para as sucessivas reformas fiscais, aliviando o big money. Que total contraste com os tempos de F.D. Roosevelt e J.F. Kennedy, sobretudo entre 1944 e 1963, quando o imposto sobre os rendimentos mais altos chegou a atingir 90%!
O “decente” Biden terminou o seu mandato indultando o próprio filho e exigindo a Kiev que empurrasse para a fornalha de uma guerra perdida jovens de 18 anos. Arriscou uma escalada bélica, lançando mísseis comandados por militares norte-americanos, contra alvos na Rússia. Antes disso, conseguiu atingir um vetusto objetivo estratégico dos EUA, reiterado em 2019 num relatório da Rand Corporation (Extending Russia): separar (energeticamente, e não só) a UE da Rússia, em particular a Alemanha. Congratulou-se, sem a assumir, com a maior sabotagem industrial da história. O “amigo” Biden, através do Inflation Reduction Act, obrigou à deslocalização de muitas empresas europeias. O cúmulo da (in)decência foi atingido quando a Administração Biden deu cobertura, em Gaza, ao maior genocídio cometido por um Estado contra um povo indefeso, desde o Camboja de Pol Pot.
É de recear que, caso Trump resolva aprender a falar de mansinho com quem por cá manda nos governos e nos media, ainda possamos acabar na Europa, só com a roupa que trazemos no corpo. E a dizer obrigado.
Professor universitário