As presidenciais e o sistema

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O regime político actual emergiu quando se frustrou a intenção da extrema-esquerda de «não perder por via eleitoral o que tanto custara a ganhar». A formulação de Vasco Gonçalves aludia, sem subtilezas, às duas vias que se abriam ao que restava de Portugal após um ano de revolução: o «poder popular» ou a «democracia liberal». O 25 de Novembro resolveu o dilema e definiu o regime.

O sistema, porém, não é o regime. Ao contrário dele, não surge de uma decisão fundadora. É antes resultado de práticas que, estendidas no tempo, sedimentam o que vale como «normalidade». Em Portugal, a prática normalizou um «presidencialismo do Primeiro Ministro», como dizia Adriano Moreira. É esta a melhor caracterização do sistema partidocrático que nos governa desde há cinquenta anos; sistema que até hoje só o surgimento do Chega, abertamente antissistema, logrou desafiar.

O «presidencialismo do Primeiro Ministro» herdou o imaginário salazarista de um Chefe do Governo todo-poderoso nomeado por um Presidente decorativo. Após a Revolução, a democracia prolongou-o, aliando-o à homogeneização política dos novos partidos. Esta começou a 28 de Setembro, com a perseguição e proibição dos movimentos que exigiam referendar a questão ultramarina. A liquidação da direita foi depois complementada com a metamorfose do PCP em respeitável partido burguês, seguidor da «via eleitoral» outrora repudiada. Neste contexto, coube ao CDS, após o 11 de Março e a «suspensão» do PDC, trazer a oposição para dentro da Constituinte. Uma oposição que não nos livrou do socialismo constitucionalmente prescrito, nem de um sistema onde tudo gravita em torno da influência de socialistas e social-democratas.

Na década de 80, o «presidencialismo do Primeiro Ministro» consolidou-se. Em 1980, surgia o sonho da AD – «um Governo, uma Maioria, um Presidente» – onde era notório ser o Governo, não a Presidência, o polo agregador da tríade. Vieram depois as limitações aos poderes presidenciais da revisão constitucional de 1982. Veio o PRD de Eanes em 1985, quando trocou o presidencialismo por mais um partido social-democrata, igual a PSD e PS. Vieram as eleições presidenciais de 1986 e a derrota de Freitas do Amaral, que um ano antes vira no presidencialismo gaullista da V República Francesa «uma solução para Portugal». Veio o «Soares é fixe» na presidência, em articulação com a omnipotência tecnocrática de Cavaco. Veio tudo isso, além de uma imprensa que, submissa e dependente, pôs no centro do sistema as eleições legislativas e se especializou em vendê-las como disputa entre «dois candidatos a Primeiro Ministro».

Passados tantos anos, é talvez tempo de olharmos criticamente para o modelo. A isso ajuda que um partido antissistema se tenha conseguido impor, contra tudo e todos, como segundo maior partido nacional. A candidatura presidencial do seu Presidente não pode deixar de ser ocasião para repensar a lógica do «presidencialismo do Primeiro Ministro». O Chega apresenta-se como alternativa à alternância entre nada e coisa nenhuma com que PS e PSD anestesiam ciclicamente o país. Tal implica também ponderar e discutir alternativas ao «Presidencialismo do Primeiro Ministro» subjacente a essa anestesia. Uma coisa não vai sem a outra. Por isso, esta não é, para André Ventura, uma eleição errada. É até talvez a eleição certa. Quem quiser conservar o sistema tem muito por onde escolher: escolherá a mesma substância adornada com a cor que mais lhe agradar. Quem estiver farto dele sabe o que tem a fazer.

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