As pessoas e a política
Uma guerra entre o governo regional e o governo central espanhóis deixou a região de Valência seis dias sem qualquer assistência, numa situação de caos total, sem energia, sem água, sem um tecto para se abrigarem, com mais de duas centenas de mortes, famílias destruídas. Entregues à sua sorte milhares de espanhóis moradores naquela região vítimas de uma tempestade extrema, estiveram seis dias sem que o governo central, nas pessoas do primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez, e do presidente da Comunidade Valenciana, Pedro Mazón, da direita conservadora, tomassem medidas imediatas no sentido de ajudar quem está no fim da linha sem os mínimos básicos da sobrevivência.
Depois tocou-nos a nós. Numa inqualificável atitude, o Ministério da Saúde ignorou o pré-aviso de greve às horas extraordinárias desencadeado pelos técnicos do INEM. Como é possível um órgâo do Estado responsável ignorar um pré-aviso de greve num serviço de emergência que tem segundos ou minutos para salvar vidas? Não há no Ministério da Saúde alguém atento? A ministra Ana Paula Martins não sabia ou não quis saber? Não existe no ministério um chefe de gabinete, adjuntos ou assessores de imprensa para alertarem a ministra para a existência de um pré aviso de uma greve que concretizando-se mataria portugueses, como veio a acontecer?
Há muito que o INEM tem problemas estruturais acumulados por falta de técnicos. Para funcionar nas suas capacidades normais o INEM precisa de 1450 técnicos. Actualmente conta, apenas, com 650 tendo necessidade de contratar mais 850. As cativações de Mário Centeno e as contas certas de António Costa desertificaram mais este serviço público que, sistematicamente, foi perdendo técnicos sem que os que saíram fossem substituídos. Durante a vigência de Fernando Araújo como Director Executivo do SNS saíram do INEM 244 técnicos sem ter havido a substituição de nenhum deles. Em boa hora o governo Luis Montenegro, muito recentemente, lançou um concurso para 200 novos técnicos. Contudo a sua formação demora cerca de dois anos. Sabendo destes problemas a ministra Ana Paula Martins deveria ter agido de imediato face à ameaça de greve e não ter “varrido o assunto para debaixo do tapete” durante dez dias. Agiu tarde e com essa atitude tornou-se, politicamente, responsável pelas mortes que venham a confirmar-se terem acontecido devido à paralisia do INEM.
Alguma coisa está profundamente errada na lógica política dos nossos dias, onde o essencial se perde na vacuidade das agendas diárias dos gabinetes ministeriais, cegos e agrilhoados pelo fluir das narrativas mediáticas em vez de colocarem a cabeça e os pés no terreno da realidade.
Que estranha lógica política deixa seres humanos desprotegidos e abandonados à sua sorte ?
Como é possível acontecer o que se verificou em Espanha, a quarta economia europeia, uma país moderno, dotado do que melhor existe em termos de infraestruturas. Ou o que se passou em Portugal, pais da União Europeia, numa incrível falha da ministra da Saúde.
Para que serve, afinal, todo o investimento público, quando há uma gélida ausência de intervenção para quem está no fio da navalha da sobrevivência?
Afinal para que serve a política?
As pessoas não deveriam ser a razão última do exercício digno da política ?
O 25 de Abril em Portugal também se fez para isso. Para pensar nas pessoas. Para o Estado agir na sua protecção e qualidade de vida. Para haver instituições fortes e bem preparadas, rapidez e eficácia nas respostas, solidariedade, uma acção imediata e efectiva.
Nos bons, mas sobretudo nos maus momentos a política tem de ser feita a pensar nas pessoas. Elas são a finalidade última de qualquer governo que se preze e queira representar os seus cidadãos com seriedade política. O que se passou em Portugal com o INEM e o caso espanhol é para termos sempre presente como exemplos do que nunca deve ser feito em política: esquecer as pessoas.