As palavras, escritas faladas ou cantadas são, possivelmente a maior invenção humana. Não são a única forma de expressão ao nosso dispor: o desenho, a fotografia, a pintura ou a escultura também são, entre outras, formas através das quais nos exprimimos.Mas a palavra é a mais relevante de todas. É, de longe, a forma mais utilizada na comunicação entre seres humanos e nem mesmo a dificuldade resultante da existência de vários códigos linguísticos, as diversas línguas, pode impedir a comunicação. Até os seres humanos fisicamente impedidos de as dizer, ou de as ouvir, podem aprender a escrevê-las. E podem ser transferidas de uma língua para outra por seres humanos habilitados a tal ou por algoritmos computacionais. E até podem ser traduzidas para linguagem gestual.As palavras tiveram, ao longo da história humana, os seus sacerdotes: Confúncio, Aristóteles, Cícero, São Tomás de Aquino, Averrois, Camões, Cervantes, Shakespeare, Dante, Victor Hugo, Goethe, Tolstoi, Hannah Arendt, Senghor, Clarice Lispector, são apenas alguns dos maiores mestres das palavras. Utilizaram-nas para descrever acontecimentos, contar histórias, divulgar ideias, debater teorias, construir pátrias, fomentar revoluções, defender ou ameaçar a liberdade. Agruparam-nas em páginas belíssimas, terríveis ou geniais.Infelizmente, as palavras têm cada vez mais inimigos. Começaram por ser fisicamente destruídas, através do fogo: desde a inquisição ao nazismo, a queima de livros procurou destruir as ideias neles expressas. Depois vieram as censuras, através da proibição ou do famigerado “lápis azul”; as perseguições políticas, os boicotes a autores, os cancelamentos de chancela woke; em extremo, a prisão e o assassinato daqueles.Nos dias de hoje, porém, os maiores inimigos das palavras são os que as distorcem, manipulam, destroem ou “reconstroem” à sua medida. O ativista, de militante que era, virou vulgar delinquente, destruindo bens ou atacando pessoas; o género deixou de ser a contraposição gramatical feminino / masculino e passou a consubstanciar uma espécie de multiplicação dos sexos; a greve já não se limita a ser a suspensão concertada da prestação do trabalho, determinada por um sindicato, e passou a abranger as mais intoleráveis formas de prestação defeituosa do trabalho, orientadas para o prejuízo, já não do patrão, mas dos cidadãos em geral.Os exemplos poderiam multiplicar-se.Terminarei com um, particularmente caricato. Qualquer dicionário definirá a televisão como um meio de transmissão de imagens e sons à distância - o áudio visual.Pois há semanas descobri, perplexo, que existem programas de televisão sem imagem (não, não se tratava de um programa acompanhado por narrador, visando os invisuais). Fazendo zapping, fui parar a um canal que “transmitia” em direto uma partida de futebol, sem imagens da mesma. O ecrã estava preenchido por uma imagem fixa de um bocadinho de relvado, vazio, parte de um painel publicitário e um senhor - locutor (?), jornalista (?) -, que descrevia as jogadas, citando os nomes dos intervenientes, como se estivesse numa estação de rádio (sem o entusiasmo e o charme dos anos 60 do Artur Agostinho). Confesso que dei comigo a sorrir, imaginando a técnica aplicada a um concurso de beleza.Quase a terminar este texto recebi uma mensagem de WhatsApp. Lembrei-me então de um outro exemplo de distorção de uma palavra. Quando aderi àquela aplicação, tive de preencher algumas exigências, entre as quais a de indicar o meu estado. Pensei com os meus botões: não devem querer que escreva “português”, pois teriam pedido a nacionalidade; também não deve ser o estado “civil”, porque não faria grande sentido; estado “sólido” seria bastante estranho.Atormentado pela dúvida, acabei por escrever “razoável”. Oxalá ainda seja verdade! Antigo presidente do Tribunal Constitucional