As minhas filhas querem que eu as repare

Publicado a
Atualizado a

Atentas ao noticiário sobre o Brasil, as minhas filhas leram no site do DN que o Presidente da República de Portugal quer reparar as ex-colónias pelos saques e pela escravidão. Como elas nasceram em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, no Brasil, há 12 anos, e eu em Lisboa, capital de Portugal, há 50, naturalmente pediram-me uma indemnização - em forma de mesada, por enquanto.

Foi uma provocação delas, claro, mas faz refletir: porque aqui no Brasil não foram os indígenas ou os afro-brasileiros, a quem seriam destinadas as desculpas e as restituições, os mais empolgados com as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa. Não: são os netos, bisnetos e tataranetos de portugueses, chamados Costa, Sousa, Oliveira, Silva ou Rodrigues, com o sangue cheio de glóbulos brancos e vermelhos, de bigode, a cantar o fado a duas vozes, que já estão a falar na grana.

É como se no rol das pessoas que se sentem lesadas pelos roubos do Al Capone se enfiassem a filha, a cunhada, a sobrinha-neta, a nora, a enteada ou o compadre do próprio mafioso a pedir ressarcimentos. Faz sentido?

Além dos descendentes de portugueses, os descendentes de europeus e de asiáticos e de outros cantos do planeta também se sentiram muito tocados pela declaração de Marcelo.

Ou seja, imigrantes que puseram os pés no Brasil pela primeira vez no final do século XIX querem beneficiar-se de uma suposta indemnização portuguesa pelos desvios de ouro e pelo tráfico de pessoas nos séculos XV e XVI? Como assim? Como se diz no Brasil, “entraram no ônibus agora e já querem sentar na janelinha”?

Entretanto, o Brasil é hoje um gigante de imenso potencial porque o colonizador português não esquartejou o país em 20 ou 30 bolívias ou guatemalas, como o Império Espanhol - isso não entra nas contas? E os benefícios do desbravamento do território, porque a maioria era inabitado, não dão um desconto? E a língua, um outro território que Machado de Assis, Chico Buarque e tantos outros génios brasileiros desbravaram, não é uma riqueza?

Portugal (ou a Lusitânia) foi invadido e colonizado por godos, visigodos, mouros, celtas, romanos - está previsto, caro Presidente da República, um pedido de reparação, por exemplo, à Câmara Municipal de Roma por ter imposto o latim e o cristianismo aos portugueses?

No Canadá, o Governo criou uma Comissão de Reconciliação com os povos indígenas locais e anunciou em 2023 um pacote de indemnização de 17,35 mil milhões de dólares. O Governo, sublinhe-se, canadiano, não foram nem o inglês, nem o francês - por que neste caso Brasília não assume parte da despesa?

Não está em causa neste texto se a tese de Marcelo é justa ou não, esse é um assunto tão complexo, tão denso e tão global que merece ser tratado além da espuma das colunas jornalísticas e das gincanas político-partidárias. Estão em causa as reações primárias, algumas eventualmente incluídas neste texto, a qualquer tese que seja atirada ao ar sem estudo detalhado, nem cuidado extremo.

Entretanto, enquanto não se fazem detalhados estudos com extremos cuidados sobre o tema, mas apenas declarações avulsas para inglês ver e correspondente estrangeiro ouvir, quem se trama são os pais portugueses de filhos brasileiros ávidos de mesadas.

Mas pior ainda deve estar o longevo e longilíneo central luso-brasileiro do FC Porto e da seleção, o Pepe, cuja mão esquerda está a pedir uma indemnização à mão direita.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt