As leituras de Bolsonaro

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É atribuída a Hipócrates a frase “nós somos aquilo que comemos”. Fiel ao ensinamento do pai da medicina, Jair Bolsonaro pediu para ser alimentado por delivery na nova morada, a cela da Polícia Federal (PF), em Brasília.

“Ele tem essa preocupação de que pudessem fazer alguma coisa com ele aqui, não está a desconfiar dos agentes da PF, mas não sabe a origem da comida até chegar à mesa dele, qual o trajeto, por quais mãos passa”, explicou o primogénito Flávio Bolsonaro, senador de profissão.

A ser verdade, por outro lado, que Bolsonaro tentou derreter a pulseira eletrónica por jurar que o aparelho tinha uma escuta, não é só de comida que o ex-presidente da República desconfia.

Aliás, como ele também não acredita em vacinas, em sondagens, em pesquisas universitárias, em investigações jornalísticas ou em votos contabilizados por urnas eletróni-cas (e alguns dos seus apoiantes não engolem sequer essas balelas de que o homem foi à lua ou de que a terra é redonda), talvez sofra, como os psicanalistas Christian Dunker e Mário Corso arriscaram quando desafiados pelo DN a fazer em 2021 um diagnóstico do personagem, de “mente paranóide”. Adiante.

É atribuída, entretanto, a Vybarr Cregan-Reid, um académico e escritor britânico da Universidade de York St. John, uma adaptação à frase de Hipócrates que ele usou como título do seu último livro: Nós Somos Aquilo Que Lemos – Um Vida com e Sem Livros.

Bolsonaro, claro, também não lê qualquer coisa. Aliás, admitiu em 2021, em entrevista à TV Bandeirantes, que não lê quase nada. “Desde que sou presidente, só Zap [whatsapp]”.

Em 2018, durante o primeiro discurso como presidente eleito, ainda se rodeou de quatro livros: a Constituição Federal, a Bíblia, Memórias da Segunda Guerra, de Winston Churchill, e O Mínimo Que Você Precisa de Saber Para Não Ser Um Idiota, o livro de Olavo de Carvalho, guru da extrema-direita brasileira, que tem o condão de fazer exatamente o contrário do que promete no título.

E, ainda em campanha, disse ter à cabeceira A Verdade Sufocada – A História Que A Esquerda Não Quer Que o Brasil Conheça, ou seja, as memórias de Brilhante Ustra, responsável na ditadura militar por, pelo menos, 45 mortes e desaparecimentos, além de espancamentos, afogamentos, choques elétricos. E por enfiar ratos nas vaginas das interrogadas, a sua magnum opus. O deputado Bolsonaro, a propósito, dedicou-lhe o voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, uma dessas interrogadas. Adiante.

Se Flávio se dedica a controlar o que o pai come, é a Jair Renan, o quarto filho, cuja primeira medida depois de eleito vereador na cidade de Balneário Camboriú foi tirar férias, que cabe gerir o que o pai lê. “Trouxe-lhe livros para distrair a cabeça”, disse, após a visita, à imprensa, que, curiosa, logo perguntou “quais livros, quais livros?”.

“Só caça-palavras”, respondeu Renan, para surpresa dos repórteres. Menos mal, melhor descobrir o nome de 12 animais escondidos numa sopa de letrinhas do que ler memórias de torturadores.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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