As janeiras, este ano

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O Ano Novo chegou, arrasta-se entre chuvas e nevoeiros, com a relutância de quem entra num espaço desconhecido e incerto, o mundo. O Ano Novo sabe da sua condição fictícia e afasta-se cada vez mais de nos dar esperanças ou alentos. Mas aqui estamos nós, em pleno 2025, avançado que vai o século XXI: continuam as guerras e a ansiedade, e prolongam-se um pouco mais as nossas vidas. Como diz um poeta felizmente reaparecido, Paulo Teixeira: “O presente vê-se ao espelho / entre épocas mortas reanimadas” (A Boda dos Tempos, 2024).

Mas eis que se ergue uma poderosa voz do meio da 9.ª Sinfonia de Beethoven: O Freunde nicht diese Toene (Amigos, não mais estes tons) e a Ode à Alegria vem preencher com força todos os nossos sentidos e afastar as névoas e as sombras, como se fosse ouvida pela primeira vez. Essa alegria que desafia todas as evidências em contrário, como nos ensinou Manuel Gusmão, é a chave valiosa da nossa resistência.

A fotografia de um homem de bata branca que progride entre ruínas rumo a um hospital bombardeado é a imagem de um ano sinistro, mas não deixa de conter, em si, a alegria de quem desafia a morte em nome da vida. E só a alegria nos pode chamar a desafiar a morte, a angústia e a solidão.

As mãos que tecem solidariedade e coragem no meio das ruínas são a promessa de que resistirá por dentro do Mal a nossa humanidade. Os braços que se levantam contra a discriminação, a exclusão e o ódio dão figura à nossa luta contra a injustiça. Ainda seremos capazes de nos erguer como uma chama a alastrar pela noite escura. Ou, para continuar a citar Paulo Teixeira: “A hora lateral, oblíqua, investe / contra os muros e olha a história de frente.” Como a toupeira de Marx.

A alegria de estarmos juntos, a partilhar bandeiras, deve ressoar por toda a parte e fazer recuar o rumor do medo e as chamas do ódio. Falta-nos uma nova épica que ilumine de sentido as lutas que teremos de travar. Lembremos a propósito Camões, que por aqui comemoramos:

Os bons sempre vi passar

No mundo graves tormentos;

E para mais m’espantar

Os maus sempre vi nadar

Em mar de contentamentos.

É contra esse desconcerto, que é desordem, do mundo, que a voz poderosa da alegria emerge do caos e nos traz a força para lutar.

Diplomata e escritor

Diário de Notícias
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