As ilhas estão cheias de vozes

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Durante alguns anos da minha infância, morei em duas ilhas dos Açores, primeiro a Terceira, depois S. Jorge. Todas as minhas recordações desse tempo são felizes e mais tarde, na universidade fiz grandes amigos açorianos e pude, em 1973, fazer um percurso por todas as ilhas, no navio Ponta Delgada.

Foi, assim, uma surpresa dolorosa para mim tomar consciência, há dois anos, numa estadia em S. Miguel, que foi pontuada por encontros insuperavelmente acolhedores e amigos, de um mal-estar não dito, que ia crescendo dentro de mim sem eu saber porquê.

Até que hoje, chegado à ilha de Ibiza para um encontro de poetas, recebido com carinho e amizade inexcedíveis, voltei a encontrar aquele mal-estar que me invadiu em S. Miguel e concluí que herdara do meu pai (ao envelhecer vamos ficando parecidos com os nossos pais), a angústia claustrofóbica da insularidade, talvez irracional hoje, com todas as comunicações que se nos oferecem, mas bem compreensível há 50 anos, quando os doentes da Ilha de S. Jorge tinham de aguardar que fizesse bom tempo no mar para poderem ser transferidos para o Hospital da Angra.

Compreendo agora melhor o que são os "custos da insularidade". Quando me disseram que bastava uma hora para dar a volta à Ilha de Ibiza, voltei a sentir aquele aperto no coração que, inexplicavelmente, sentira anos atrás em S. Miguel, e que na minha infância nunca conhecera. Eu gostava da pequenez da minha Ilha de S. Jorge e da sua capital, a vila das Velas, onde caminhava pelas ruas como se fossem os corredores da minha casa e assistia, com total incompreensão, às angústias do meu pai.

Quando consideramos as criações culturais dos nossos autores açorianos e madeirenses, quase sempre encontramos, sob diversas formas e diferentes modos, esse sentimento de insularidade e todos os mecanismos psicológicos postos em marcha para afastar esse mal-estar, convertendo-o em amor pelo lugar ou numa outra forma de nostalgia, mecanismos que não poucas vezes resultam num extraordinário estímulo à criatividade.

São os ilhéus que melhor entendem e lidam com a insularidade, que não nós, os continentais. Mas compreender que não é uma palavra vã falar-se dos custos da insularidade é uma tomada de consciência que vale para que todos nós, os que não vivemos nas ilhas, passemos a dar uma maior atenção aos nossos compatriotas dos Açores e da Madeira, às suas carências e às suas grandezas.

Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso (1590), é considerado o livro inaugural da literatura açoriana (como poderia também ser de uma literatura madeirense). Mas foi só no século passado que surgiu a questão da existência de uma identidade própria da cultura açoriana e foi Vitorino Nemésio quem crismou o termo "açorianidade". Diz Nemésio: "Para nós, (...), ilhéus inatos, contumazes, açorianidade é o nosso modo de afirmação no mundo, a alma que sentimos no corpo que levamos."

Criticando com rigor conceitos identitários essencialistas e amarrados ao passado, Onésimo Teotónio de Almeida, na sua notável obra ensaística, exprime uma noção dinâmica e virada para o futuro do que poderá ser uma ideia de "literatura açoriana", hoje já com um "corpus" relevante, açoriana de raiz, mas ligada estrutural e organicamente à Literatura Portuguesa ("A literatura açoriana não é independente da portuguesa, uma vez que ela se desenvolve dentro das linhas fundamentais desta, podendo o mesmo escritor ser representativo da tradição literária açoriana, sem deixar de pertencer, de pleno direito, à Literatura Portuguesa" recorda Onésimo), uma literatura nunca idêntica a si mesma e sempre aberta às mudanças e ao mundo. Não exclui a questão de autores como o continental Raúl Brandão terem dado um contributo importante para a formação do espaço literário que fez a aura das ilhas, nem a projeção que pode assumir uma escrita que, sem esquecer o local donde parte, se abalance, como faz toda a grande literatura, ao universal. Como muito bem diz Onésimo a defesa da açorianidade "não é um bairrismo doentio, mas sim o gostar de ser donde é".

E assim saltei de Ibiza para os Açores, do manso Mar Mediterrânico (onde todos os dias morrem refugiados) para a braveza do Atlântico, um mar rude, duro e indomável - mas que é o nosso mar.

Diplomata e escritor

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