As ambições polacas
Da encomenda de mísseis americanos às restrições de movimentos dos diplomatas russos, passando pelo forte reforço das fronteiras com a Bielorrússia e com o enclave russo de Kaliningrado, várias notícias nos últimos dias mostram a determinação da Polónia de estar na primeira linha do esforço ocidental para contrariar a Rússia. E se não se vê nesta atitude grandes diferenças entre o atual Governo liberal e o seu antecessor conservador, a verdade é que foi já com Donald Tusk de novo como primeiro-ministro que se confirmou que o orçamento militar polaco, em 2023, atingiu os 3,9% do PIB, o mais alto em termos relativos de todos os Estados-membros da NATO.
Sem dúvida que a invasão russa da Ucrânia em 2022 foi especialmente sentida pelos polacos, não só pela proximidade com os ucranianos como também pela traumática história das relações polaco-russas. É certo que em 1610-1612 o Exército polaco chegou a ocupar Moscovo, numa época em que a Federação Polaco-Lituana era uma das grandes potências da Europa e a Rússia vivia uma era de caos, mas na memória popular está bem mais presente a partição do país no final do século XVIII por russos, austríacos e prussianos, a tentativa da Rússia Bolchevique de impedir a independência proclamada em 1918, ou a invasão soviética de setembro de 1939, quando os polacos lutavam já contra a Alemanha, o outro inimigo histórico desta nação com mil anos. A era comunista, no pós-Segunda Guerra Mundial, também deixou recordações amargas em relação aos russos, pois os governantes de Varsóvia estavam às ordens de Moscovo, tal como era regra nos países da Europa de Leste.
Finda a Guerra Fria e extinto o Pacto de Varsóvia (ironicamente, a capital polaca foi o palco da assinatura, em 1955, do acordo militar destinado a contrabalançar a NATO), a nova Polónia, com os pergaminhos democráticos conquistados com a luta do sindicato Solidariedade de Lech Walesa, assumiu-se marcadamente do campo Ocidental. De maioria católica - e recordemos como o Papa João Paulo II, o polaco Karol Wojtyla, foi importante no desafio ao comunismo -, a Polónia tenta ser, do ponto de vista histórico, uma espécie de líder dos eslavos ocidentais, por contraponto aos eslavos orientais, tradicionalmente na esfera da Igreja Ortodoxa Russa. E houve momentos mesmo em que foi a intervenção polaca, como a do rei Jan Sobieski, em 1683, a desfazer o cerco turco a Viena, que salvou a Cristandade, pelo menos aquela que obedece ao Papa.
Bem mais perto do nosso tempo, destaque-se o pioneirismo do país na adesão à NATO, logo em 1999, no apoio à América aquando da invasão do Iraque em 2003, também a entrada na UE em 2004, o maior dos dez países do chamado grande alargamento.
A ambição política da Polónia pós-1989 (ano do primeiro Governo do Solidariedade, entretanto transformado em movimento político) pode ter sido alimentada por algum revanchismo histórico, mas contou com uma impressionante dinâmica económica. Com um importante mercado interno (quase 40 milhões de habitantes), vizinha da Alemanha - e, portanto, atrativa para a deslocalização de empresas -, e dona de uma mão-de-obra qualificada a bom preço, a Polónia teve anos dourados sucessivos, décadas até, o que faz com que hoje seja a quinta maior economia da UE e a 21.ª a nível mundial (desde 1991, todos os anos foram de crescimento, exceto 2020, com a pandemia).
Não por acaso, George Friedman, no seu livro Os Próximos 100 Anos, apontava a Polónia como uma das potências emergentes, um país capaz de surpreender no contexto europeu e até global. Empresas portuguesas como o Millennium, a Jerónimo Martins e a Mota-Engil foram das primeiras a acreditar no milagre económico polaco.
Membro fortemente entusiasta da NATO, ao ponto de se poder dizer que Varsóvia confia mais em Washington do que em Bruxelas, a Polónia tem uma população que se sente atlantista e, mesmo entre os mais conservadores, europeísta. Os choques nos últimos anos entre o Governo conservador e a União Europeia, que acusava a Polónia de estar a pôr em risco o Estado de Direito, pertencem agora ao passado, tanto mais que Tusk, além de liberal, é um devoto de Bruxelas, ou não tivesse sido presidente do Conselho Europeu, depois de uma primeira experiência como primeiro-ministro até 2014.
Portanto, é natural que tanto Joe Biden como Ursula von der Leyen se sintam reconfortados com o caminho que leva a governação em Varsóvia, e, ao contrário do líder americano, a presidente da Comissão Europeia até pode vir a beneficiar do importante apoio polaco para os seus planos de reeleição.
Em termos absolutos, os 31,6 mil milhões investidos pela Polónia em Defesa em 2023, colocam o país apenas em 14.º mundial em termos de despesas militares, com o trio da frente a continuar a ser os Estados Unidos, a China e a Rússia. A Ucrânia surge em 8.º. Mas a duplicação, numa década, da percentagem do PIB investido (era 1,9% em 2014) mostra bem como o conflito em território ucraniano é visto como existencial por polacos e outros países de Leste, casos da Estónia, Letónia e Lituânia, que faziam parte da União Soviética em 1991, quando esta se desagregou, pondo fim a uma Guerra Fria que nos últimos anos parece ter regressado ainda que com contornos diferentes.
Mais do que as ambições de poder polacas, é preciso ter em conta os traumas históricos (não esquecer o massacre de oficiais em Katyn, que durante décadas os soviéticos atribuíram aos nazis) para perceber a relativa facilidade com que o Governo de Varsóvia concretiza em termos orçamentais o apoio esmagador que as sondagens internacionais mostram do seu povo à Ucrânia e à necessidade de contrariar a Rússia.
Também pela ausência dessa relação trágica com a Rússia (a distância conta), percebe-se por que o forte apoio que as mesmas sondagens mostram dos portugueses à Ucrânia (o segundo na Europa, só atrás dos polacos, e ainda esta semana se comprovou a popularidade de Volodymyr Zelensky na visita que fez a Portugal) não pressiona verdadeiramente o Governo (seja este da AD, seja antes o do PS) a aumentar a despesa militar, que está ainda nos 1,5% do PIB, muito longe dos 2% assumidos como compromisso pelos 32 Estados-membros, mas que só 11 cumpriram em 2023, segundo os dados do SIPRI, o Instituto de Estocolmo para a Paz, uma autoridade nesta matéria.
Voltando aos polacos, e às previsões do americano Friedman, não deixa de ser evidente um desejo não só de afirmação perante a Rússia (o presidente Andrzej Duda chegou a falar de instalar armas nucleares americanas no país, com Moscovo a dizer logo que eram “declarações provocadoras”), como a confirmação de uma estratégia de liderança regional, antes confinada ao chamado Grupo de Visegrado (que inclui também checos, eslovacos e húngaros), mas agora estendendo-se ao Báltico e, de certa forma, à própria Ucrânia, apesar de a relação bilateral ter alguns escolhos.
Se a economia continuar a crescer, e o continente não mergulhar, de súbito, numa guerra generalizada - como há quem tema, devido à nova corrida aos armamentos -, teremos uma potência a ressurgir a Leste, um parceiro a ter em conta pela dupla que costuma mandar mais na UE, como mostrou a cimeira em março, em Berlim, do presidente francês Emmanuel Macron e do chanceler alemão Olaf Scholz com o polaco Tusk. Mas muita atenção: já depois da invasão da Ucrânia, Friedman, o tal que prevê um grande futuro para a Polónia, analisou o país e aconselhou a que este tivesse o máximo de cuidado ao lidar com a Rússia, que continua a ser um poderoso rival.
Diretor adjunto do Diário de Notícias