Arquipélagos

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Afirmou John Donne na mais famosa das suas Meditações, que “nenhum homem é uma ilha isolada/inteiro em si mesmo”, e que “cada homem é uma partícula do continente/uma parte do principal”, o que revela que não poderia, de modo alguma, nem com o recurso a qualquer engenhosa máquina do tempo, estar a pensar no que se tornaram muitas das salas de professores, não apenas de Portugal, mais de 400 anos depois da publicação do volume Devotions upon Emergent Occasions (1624), que escreveu após recuperar de grave doença, o que pode explicar o tom algo esperançoso do escrito.

Quando olho hoje, literal ou metaforicamente, para as “salas de professores”, não vejo qualquer continente, mesmo que dividido por fronteiras, mas um vasto mar tempestuoso, onde se avistam ilhas, algumas isoladas, muitas dispersas e outras agrupadas em “arquipélagos” de configuração variada, ligados por relações que, em tantos casos, se limitam a estratégias de sobrevivência, num ambiente cada vez mais hostil.

O fenómeno da relativa fragmentação da classe docente, em geral, e do corpo docente das escolas, em particular, não é novo, pois desde que me lembro - horizonte pessoal na segunda metade dos anos 80 do século passado - que sempre existiram grupos, maiores ou menores, marcados por situações como a formação académica, a área disciplinar ou a idade, embora com amplitude muito menor que a actual, a par das naturais relações de amizade e afinidade.

No entanto, apesar da existência de muita gente que então até poderia estar em trânsito pela docência, a caminho de outros destinos, havia uma sensação de razoável pertença a um “continente” profissional, com o qual se partilhavam as principais aspirações, quiçá mesmo um projecto de profissão. Algo que foi sendo destruído, à medida que ser professor se foi transformando em muitas outras coisas e a carreira, para além de todas as adversidades que foi atravessando desde a primeira década do século XXI, se foi desagregando internamente, em virtude do aparecimento de possibilidades de “subcarreiras”, mesmo que não previstas formalmente, disputando os parcos créditos ainda disponíveis, da gestão escolar a uma multiplicidade de projectos, preferencialmente desenvolvidos longe das salas de aula.

Lembro-me de, na escola secundária onde fui aluno e à qual voltei nos primeiros anos como professor, ter visto suceder 3 ou 4 presidentes do Conselho Directivo em pouco mais de uma década. Outros cargos, eram poucos, de permanência transitória e nem sequer muito desejada. Agora, parte da razão da extrema atomização da docência resulta da criação de diversos “feudos” internos nas escolas, numa lógica de micro-poderes, deixando a maioria dos indivíduos cada vez mais reduzidos à sua dimensão particular, mesmo quando ainda conseguem manter uma, maior ou menor esfera relacional. Os tais arquipélagos.

Professor do Ensino Básico.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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