Anotações de fim de ano

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Se me pedissem para resumir 2025 numa só palavra, diria “turbulência”. Este foi um ano de grande desassossego e não sei a quem deve ser atribuído o lugar cimeiro no pódio da desonra: a Vladimir Putin, Donald Trump, Benjamin Netanyahu ou ao general rebelde sudanês Mohamed Hamdan Dagalo, também conhecido por Hemedti. Outros nomes poderiam ser acrescentados à lista, incluindo os de líderes terroristas, mas não vale a pena falar de atores de segundo plano nem tornar o rol demasiado extenso. 

O ano termina deixando os principais analistas geopolíticos profundamente inquietos. Há décadas que a palavra guerra não estava tão presente nos discursos de pessoas influentes. Agora a palavra aparece repetidamente, como se fosse uma inevitabilidade no horizonte mais próximo. É uma maneira perturbadora de fechar o ano. Quando a conversa sobre a guerra monopoliza o espaço mediático e o debate público, faz-nos esquecer o papel da diplomacia e das organizações internacionais e abre as portas à desinformação, à alienação e ao ódio. Dá-se, assim, palco e credibilidade aos criminosos de guerra, a gente que deveria ser corrida para fora do poder, e trazida à Haia.    

Afinal, o que se aprendeu em 2025? Em resumo, que a paz, a cooperação, e a estabilidade no respeito pela lei internacional, não são, contrariamente à ilusão criada desde o fim da Guerra Fria, os pilares dos tempos modernos. Devem ser as bases da globalização, mas a globalização não é apolítica. De um lado da medalha, é positiva. Do outro, cria dependências, vulnerabilidades e traz de volta o uso discricionário da força. É apesar de tudo fundamental insistir na dimensão positiva da globalização e condenar sem hesitações quem não respeita as normas internacionais e não quer reconhecer que o futuro da humanidade só será próspero se existir solidariedade entre os povos e paz entre os Estados. Acreditar que é possível chegar a um acordo de paz com gente como Putin, por exemplo, só passa pela cabeça de atores ambíguos e incompreensíveis como Steve Witkoff ou de quintas-colunas bem conhecidas como Viktor Orbán.  

Putin é um tirano e, como todos os outros líderes totalitários, não reconhece o valor da diplomacia nem da ponderação. Esta semana, numa troca de correspondência com um dos membros do seu círculo, o cavalheiro tentou convencer-me que Putin personifica o sentimento e alma histórica do povo russo. Assim como Trump seria a personificação da vontade da maioria dos cidadãos americanos. Tive de lhe lembrar algo que ele sabia, que conheci múltiplos ditadores ao longo da minha vida profissional. A última coisa que diria sobre essa gente é que representam o povo a que pertencem. O inchamento do seu ego desmesurado é a sua principal motivação. Na verdade, representam-se apenas a si próprios, à sua ambição sem limites, e os oportunistas que a eles se agarram. É tudo uma questão de péssima liderança levada ao extremo. Não aceitam acordos de paz e, muito menos ainda, o espectro de uma derrota. A subjugação daqueles que catalogam de inimigos é a única solução que consideram no seu delírio. Um ditador oprime, cria uma narrativa falsa e um sistema de controlo absoluto do poder. Quem julga que pode confiar num déspota é pura e simplesmente um ingénuo.  

Essa deve ser uma das lições do ano. Infelizmente, há líderes que parecem não ter aprendido a lição. Dizem-se convencidos e querem forçar outros a aceitar que é possível chegar a um acordo com um Putin de boa-fé.  

Este nunca aceitará assinar garantias de segurança que sejam efetivamente suficientes para garantir a sobrevivência da Ucrânia. Já o afirmou de modo claro: a força de estabilização, se algum dia vier a ser estabelecida, não deve nem pode integrar tropas europeias. Na melhor das hipóteses, Putin aceitaria que fosse composta por militares de países pouco desenvolvidos ou, então, por destacamentos provenientes de regimes vassalos ou próximos da política do Kremlin. Uma missão de estabilização desse género seria meramente simbólica, como travar o vento com as palmas das mãos. Para ter legitimidade e eficácia, deveria resultar de um compromisso genuíno e sincero entre a Ucrânia e a Rússia, e decorrer de um mandato aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU. Nada disso tem qualquer possibilidade de acontecer nos tempos mais próximos. A França e o Reino Unido vetariam uma resolução que não oferecesse garantias suficientes. E a Ucrânia não poderia aprovar uma montagem de facto arquitetada no Kremlin.  

Quer se queira quer não, o ano que agora termina deve lembrar-nos duas outras dimensões: que o traçado das fronteiras não deve depender da força das armas, e que quem inicia uma agressão contra um outro Estado deve ser indiscutivelmente responsabilizado pelos crimes cometidos e pelos danos provocados. 

É essencial lembrar isto num momento em que se discute em Bruxelas o que fazer com os fundos soberanos russos que estão já congelados na Bélgica. Esses fundos devem continuar retidos até ao fim do conflito e à justa assunção pela Rússia das suas responsabilidades pelo que destruiu e por quem feriu e matou na Ucrânia. Apenas nessa altura, aquando das negociações de paz, deverá ser decidido o destino a dar a esses fundos. Poderão ser utilizados, incluindo os juros acumulados, para reparações de guerra, o que seria a conclusão mais apropriada. Entretanto, os Estados aliados da Ucrânia devem emitir dívida comum destinada ao financiamento das despesas públicas ucranianas, a título de empréstimos e com a garantia dos ativos russos congelados, e apertar o regime de sanções contra a Rússia e os seus parceiros internacionais. Esta é, no entanto, uma solução temporária. Caso o Kremlin continue a insistir no prolongamento da agressão, a questão deverá ser revista. A não utilização direta, para já, dos ativos russos deve ser apresentada como um gesto em prol da paz. Mas com prazo de validade.   

Conselheiro em segurança internacional.

Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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