Celebrou-se esta semana, a 11 de Novembro, o cinquentenário da independência de Angola. O Presidente João Lourenço, na ocasião festiva, reduziu as alusões a Portugal à invocação de «quinhentos anos de colonialismo, escravatura e humilhação». Não é hoje algo que surpreenda. Para muitos, é natural. Que esperar afinal de discursos protocolares, sem subtilezas historiográficas, que visam os mitos fundadores da independência? Poder-se-ia exigir rigor histórico quando se trata de forjar uma política da memória?Seria interessante debater a questão e é eloquente que ninguém o faça. Seria possível a Angola construir uma identidade nacional com respeito pela história e sem o mito da luta secular contra o «colonialismo»? Sê-lo-ia sem celebrar a aliança do regime com o internacionalismo cubano? Ou sem invocar a chamada vitória militar sobre o racismo sul-africano em Cuito Cuanavale, origem remota imaginária de uma suposta era de paz e prosperidade após décadas de guerra civil? As autoridades portuguesas, parece, acham que não. Por isso, sujeitam-se a escutar João Lourenço em silêncio resignado, como se as falsificações da história não afectassem as relações de Portugal quer consigo mesmo, enquanto comunidade cultural e política, quer com um mundo onde milhões de pessoas falam português, provêm de famílias portuguesas e extraem dessa ascendência referências e memórias que devem ser respeitadas.Conhece-se o destino trágico do que, após o Oriente e o Brasil, alguns chamaram o «terceiro império português». Após os massacres no Norte de Angola, em Março de 1961, que dariam origem à Guerra do Ultramar, o que estava em jogo era simples. De um lado, como repetia amiúde o Ministro dos Negócios Estrangeiros Franco Nogueira, a política portuguesa em África pretendia uma integração racial e multicultural acelerada, tentando uma terceira via entre duas políticas racistas: o racismo branco do apartheid sul-africano e o racismo negro dos que invocavam os «condenados da terra». Era este o título de um livro de Frantz Fanon que um prefácio de Sartre, na França de 1961, ajudara a celebrizar. Do outro lado, na África portuguesa, personagens como Holden Roberto, na falta de hermenêuticas sofisticadas como as dos Mamadous contemporâneos, liam de forma literal as passagens que nele instavam a «enterrar» os brancos ou «expulsá-los do território».Apesar da guerra, a política portuguesa de integração desses anos deu frutos. Sobretudo em Angola. A partir da década de 60, o seu desenvolvimento acelerou uma economia pujante, fomentou políticas de educação e saúde, circunscreveu a guerrilha independentista a incursões sem enraizamento local. Assim, Angola teve toda a sua estrutura como Estado montada antes da independência: tornou-se Estado autónomo em 1973 e foi nessa condição que se deparou com o 25 de Abril. E o resto é história. Os desvarios da metrópole entregaram-na aos comunistas. Rosa Coutinho, promovendo o MPLA apoiado pelo comunismo internacional, condenou-a à tirania do partido único. Atirados aos tubarões, perderam-se sonhos e esperanças de centenas de milhares de portugueses africanos e europeus. Muitos retornaram a uma terra onde jamais tinham vivido. Depois, foi a guerra civil e as violências de Agostinho Neto e fraccionistas. Foi o poder autocrático, a pobreza e a cleptocracia que condicionam Angola até hoje. O resto é história, decerto. Mas, por isso mesmo, uma política de memória não deve temer recordá-la.