Andamos a brincar às casinhas? Fingimos que prevenimos 

Publicado a

A prevenção da violência sexual contra crianças é um tema profundamente sério e, no entanto, continua a ser tratado com alguma superficialidade. Ficamos chocados com as estatísticas e exigimos penas mais duras para os agressores, focados apenas na punição – e não na prevenção. Continuamos a ouvir dizer que “não se deve falar disto com as crianças”, porque pode assustá-las ou traumatizá-las. Persiste a ideia errada de que a prevenção da violência sexual significa falar de ideologia de género ou de sexo, de forma explícita. 

Todos os anos, os dados disponíveis revelam uma incidência crescente de crimes sexuais contra crianças, de ambos os sexos e de todas as idades. Em Portugal, o grupo etário mais afetado situa-se entre os 8 e os 13 anos, mas os casos envolvendo bebés e crianças em idade pré-escolar também estão a aumentar. 

No mundo digital, a realidade conhecida é aterradora. Segundo a Internet Watch Foundation, em 2024 foram identificadas 424.047 páginas web com conteúdos sexuais envolvendo crianças — um aumento de 8% face ao ano anterior. Destes conteúdos, 29% pertencem à categoria A, ou seja, envolvem penetração sexual, atos com animais ou comportamentos sádicos. Isto significa que milhares de crianças são penetradas (oral, anal ou vaginalmente), envolvidas em atos com animais (tema quase nunca abordado), ou sujeitas a agressões físicas, queimaduras, estrangulamentos, chicotadas ou tortura. 

As idades destas crianças são igualmente chocantes: a maioria das vítimas situa-se entre os 7 e os 10 anos, totalizando quase 229 mil crianças; segue-se a faixa etária dos 11 aos 13 anos, com cerca de 218 mil; entre os 3 e os 6 anos foram mais de 101 mil; e, só em 2024, mais de 13 mil crianças com idades entre 0 e 2 anos foram identificadas nestes ficheiros. 

Estas crianças não são virtuais. Existem - ou existiram - num tempo e lugar reais. São de carne e osso. Sentem dor física e emocional. Choram e gritam em muitos destes vídeos e imagens, o que, para alguns agressores, gera maior excitação sexual. 

Ninguém pode ficar indiferente a estes dados. Não adianta fingir que nada se passa, nem acreditar que tudo acontece “lá longe”. Acontece aqui. Em Portugal. Na nossa cidade. No nosso bairro. Tantas vezes, na nossa casa. 

É por isso que precisamos de olhar para este fenómeno com a seriedade que exige. Não basta fazer ações pontuais em abril, mês da prevenção dos maus-tratos. Ou em novembro, porque se comemora a convenção sobre os direitos da criança. Também não basta colar cartazes em escolas ou centros comunitários, fazer estendais dos direitos ou laços humanos.  

Precisamos de uma estratégia preventiva eficaz, alinhada com as principais orientações internacionais, que inclua o reforço da legislação e das sanções contra crimes envolvendo crianças, o aumento da responsabilidade empresarial (através da criação de códigos de conduta éticos, da verificação da idade nos acessos e da disponibilização de canais acessíveis de denúncia), bem como a promoção de uma maior cooperação internacional. A nível local, é urgente investir na formação de profissionais de diversas áreas e implementar programas de prevenção primária que sejam sistémicos, continuados no tempo e baseados em evidência científica

Há décadas que outros países trabalham nesta área, e os estudos são claros: os programas de prevenção da violência sexual, implementados em contexto educativo, envolvendo as famílias, com várias sessões e atividades participativas, e desde a idade pré-escolar, têm um impacto positivo nos conhecimentos e competências de proteção das crianças. 

Perante tudo isto, pergunto: Por que razão continuamos, em Portugal, a brincar às casinhas? Ou seja, a fingir que estamos a prevenir? 

Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

Diário de Notícias
www.dn.pt