A atribuição do Prémio Camões a Ana Paula Tavares constitui um facto especialmente importante, uma vez que reconhece a relevância da língua portuguesa no mundo, e em especial para a poeta, historiadora e antropóloga na cultura dos trópicos. Estamos perante o caminho nómada de um idioma, enriquecido pela riqueza da permanência e da passagem. Ler e ouvir Ana Paula Tavares é compreender a diversidade de experiências que a escritora foi testemunhando. “Os contadores de histórias do meu país (ouvimo-la) sabem como usar as suas línguas maternas para realizarem as tarefas de Deus, a transmutação do corpo em voz, e uma vez voz, repetir o murmúrio da tradição que assim se fortalece e se transforma em pedra de tanto durar. (…) Assim se acumulam notícias e cresce o espanto, que a língua tem dessas armadilhas: amortece a queda, cuida dos viventes, ensinando a conviver com a notícias deste danado tempo dos anos da peste”.Nascida no planalto da Huíla, Paula Tavares deixou-se fascinar pela região e pela sua vida. Aí foi a sua primeira casa a dois mil metros de altitude, onde o olhar se perdia na distância do horizonte, limitado pela serra. A sua poesia liga-se aos ciclos da vida, à terra, às flores, aos frutos, e está cheia de oralidade, perante o mistério e a diversidade das línguas locais. O ritmo dos poemas é dominado pela cadência dos relatos mais antigos dos comerciantes de gado, que iam e vinham. E o mundo das mulheres fascinava-a. Elas compreendiam bem a vida autêntica. “Filha da savana / A árvore fêmea / Oferece os frutos / Na estação seca / Comida de onça / Remédio de gente / Serve de goma / Ao bairro das oleiras”. Cada poema encerra o entendimento de que as pessoas e a natureza se casam naturalmente. E todos os segredos se revelam aí. “Os livros, as estações do ano, as chuvas e as palavras jazem esquecidas nos baús da memória (diz-nos ainda). Ninguém sabe como ou porquê tal fenómeno acontece e dele só damos conta quando de repente, assim de manso, um acontecimento, uma moda, um ato de vontade, traz à superfície de muito turvas águas a palavra, o cheiro da terra molhada, as goiabas penetrando os poros, saturadas de cheiro, o silêncio breve de uma igreja vazia, o doce calor de uma vela acesa. As línguas francas, próprias ou alugadas, estão cheias desses enigmáticos recursos e engordam à custa de vocábulos repescados, esquecidos, retomados outra vez”. E, lembrando Mia Couto, Ana Paula diz-nos, no fundo de si: “Há que celebrar a viagem a empreender dentro de nós.”Neste ainda ano do centenário do nascimento de Camões, a escritora faz da nossa língua comum o arado que vai permitir que a terra nos dê o fruto da palavra, que entra no coração da gente. É, pois, com emoção que recordamos o exemplo de Ana Paula Tavares, e que ouvimos as suas palavras, de mulher, lutadora da liberdade, amante da escrita, da língua e da generosidade dos povos que nos unem e fazem compreender as diferenças, sentindo-a como um elo forte que liga as várias margens do Atlântico. E ao lembrar há dias o exemplo da autora de Sangue da Buganvília com os confrades da Academia Brasileira de Letras quis exprimir como a língua portuguesa se expande nos quatro cantos do mundo exigindo-nos uma vontade comum de continuar o caminho ao encontro da liberdade e da diferença. Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian