Opinião
16 abril 2022 às 22h00

A guerra de Putin destruirá a Rússia

Nina L. Khrushcheva

Há uma velha piada soviética sombria que soa provavelmente muito verdadeira para os ucranianos de hoje. Um francês diz: "Vou de autocarro para o trabalho, mas quando viajo pela Europa, uso o meu Peugeot". Um russo responde: "Nós também temos um sistema maravilhoso de transportes públicos, mas quando vamos para a Europa, usamos um tanque".

Essa piada surgiu em 1956, quando Nikita Khrushchev ordenou que tanques entrassem em Budapeste para esmagar a Revolução húngara antissoviética, e reapareceu em 1968, quando Leonid Brejnev enviou tanques para a Checoslováquia para esmagar a Primavera de Praga. Mas em 1989, quando Mikhail Gorbachev optou por não enviar tanques ou tropas para a Alemanha para preservar o Muro de Berlim, a piada parecia destinada a tornar-se coisa do passado. Se o presidente Vladimir Putin nos mostrou alguma coisa, no entanto, é que não podemos acreditar no presente, e tudo o que importa para o futuro da Rússia é o seu passado.

Para Putin, o passado que mais importa é aquele que o autor dissidente e vencedor do Nobel Alexander Soljenítsin exaltou: o tempo em que os povos eslavos estavam unidos dentro do reino cristão ortodoxo da Rússia de Kiev. Kiev era o seu coração, tornando a Ucrânia central para a visão pan-eslava de Putin.

Mas, para Putin, a guerra na Ucrânia tem que ver com preservar a Rússia, não apenas expandi-la. Como o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, deixou claro recentemente, os líderes da Rússia acreditam que o seu país está preso numa "batalha de vida ou morte para existir no mapa geopolítico do mundo". Essa visão do mundo reflete a obsessão de longa data de Putin por obras de outros filósofos emigrantes russos, como Ivan Ilyin e Nikolai Berdyaev, que descreveram uma luta pela alma euroasiática (russa) contra os atlanticistas (o Ocidente) que a destruiriam.

CitaçãocitacaoEmbora o destino da Ucrânia, da Europa e do resto do mundo após o fim do tiroteio continuem uma incógnita, o resultado para a Rússia é demasiado óbvio: um futuro tão negro quanto o seu passado mais sombrio.esquerda

No entanto, Putin e os seus neo-eurasiáticos parecem acreditar que a chave para a vitória é criar o tipo de regime que os filósofos antibolcheviques mais detestavam: um regime administrado pelas forças de segurança. Um estado policial cumpriria a visão de outro dos heróis de Putin: o chefe da KGB que se tornou secretário-geral soviético Yuri Andropov.

Tanto em 1956 como em 1968, Andropov foi o principal defensor do envio dos tanques. Ele acreditava que esmagar a oposição ao domínio soviético era essencial para evitar a destruição da URSS nas mãos da NATO e da CIA. É praticamente a mesma lógica que está a ser aplicada na Ucrânia hoje - se é que se pode chamar lógica. Hoje, a batalha para "salvar a Rússia" parece ser pouco mais do que o produto da imaginação fervilhante de um homem.

Há boas razões para acreditar que nem mesmo as autoridades russas do mais alto escalão tiveram muito a dizer sobre a guerra na Ucrânia. Lavrov apresentou explicações e objetivos conflituantes. A diretora do banco central da Rússia, Elvira Nabiullina, tentou renunciar logo após a invasão, mas Putin não o permitiu.

Quanto ao Serviço Federal de Segurança da Rússia, parece que o Departamento de Informações Operacionais do FSB foi responsável por alimentar Putin com a narrativa ucraniana que ele queria ouvir: os irmãos eslavos da Rússia estavam prontos para serem libertados dos colaboradores nazis e das marionetas ocidentais que lideravam o seu governo. Provavelmente nunca passou pela cabeça deles que Putin ordenaria uma invasão da Ucrânia - um movimento claramente contrário aos interesses da Rússia - com base nessas informações. Mas ele fê-lo, e cerca de 1000 funcionários perderam os seus empregos devido ao fracasso da operação.

Essas perdas de empregos estendem-se aos militares para além do FSB, também aqueles parecem ter sido mantidos quase completamente às escuras sobre se, quando e por que motivo aconteceria uma invasão. O ministro da Defesa, Sergei Shoigu - o membro mais antigo do governo -, desapareceu em grande parte dos olhos do público, provocando especulações de que Putin pode ter planeado a guerra com os seus antigos colegas oficiais do KGB, e não com os militares.

Independentemente de como começou, a guerra provavelmente terminará de quatro maneiras. A Rússia poderia assumir o controlo de parte ou de toda a Ucrânia, mas apenas por pouco tempo. A luta dos militares russos para ganhar o controlo sobre as cidades ucranianas e mantê-lo sobre a única grande cidade que conquistou sugere fortemente que não consegue sustentar uma ocupação de longo prazo. A desastrosa guerra soviética no Afeganistão, que acelerou o colapso da URSS, vem à memória.

No segundo cenário, a Ucrânia concorda em reconhecer a Crimeia, Donetsk e Lugansk como territórios russos, permitindo que a máquina de propaganda do Kremlin produza histórias de ucranianos "libertados". Mas, mesmo que o regime de Putin reivindicasse a vitória, a Rússia continuaria a ser um pária global, com a sua economia permanentemente marcada por sanções, abandonada por centenas de empresas globais e cada vez mais desprovida de jovens.

No terceiro cenário, um Putin cada vez mais frustrado utiliza armas nucleares táticas na Ucrânia. Como Dmitry Medvedev, ex-presidente e vice-presidente do conselho de segurança da Rússia, alertou recentemente, a Rússia está preparada para atacar um inimigo que usou apenas armas convencionais. A propaganda do Kremlin certamente apresentaria isso como uma vitória, provavelmente citando o bombardeamento de Hiroxima e Nagasáqui pelos Estados Unidos em 1945 como precedente para o uso de armas nucleares para acabar com uma guerra, e prova de que qualquer crítica ocidental era hipocrisia.

No último cenário, o presidente dos EUA, Joe Biden, vê o seu desejo realizado: Putin é removido do poder. Dado que a Rússia não tem tradição de golpes militares, isso é altamente improvável. Mesmo se isso acontecesse, o sistema que Putin construiu permaneceria em vigor, sustentado pela corte de ex-colegas do KGB e outros homens de mão da segurança (siloviki) que ele tem vindo a preparar há duas décadas. Embora o aventureirismo estrangeiro pudesse diminuir, os russos permaneceriam isolados e oprimidos. Afinal, o FSB pode não ter acreditado que a guerra estava a aproximar-se, mas explorou avidamente a "operação militar especial" de Putin como uma oportunidade para implementar medidas restritivas e afirmar o controlo total sobre a sociedade.

Ao atacar outro país europeu, Putin cruzou uma linha traçada após a Segunda Guerra Mundial, e mudou o mundo. Mas ele também mudou a Rússia, de uma autocracia funcional para uma ditadura estalinista, um país caracterizado por repressão violenta, arbitrariedade inescrutável e uma fuga maciça de cérebros. Embora o destino da Ucrânia, da Europa e do resto do mundo após o fim do tiroteio continuem uma incógnita, o resultado para a Rússia é demasiado óbvio: um futuro tão negro quanto o seu passado mais sombrio.

Professora de Relações Internacionais em The New School, é coautora (com Jeffrey Tayler) de In Putin"s Footsteps: Searching for the Soul of an Empire Across Russia"s Eleven Time Zones (St. Martin"s Press, 2019).
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