Amamentação e outras distrações

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Como sucede com a maioria das discussões sobre temas relevantes para o país, os últimos dias decorreram sob a enfadonha gritaria entre detratores deste Governo, de um lado, e os seus indefetíveis apoiantes, do outro, a propósito da versão preliminar de alteração à legislação laboral apresentada pelo executivo aos parceiros sociais.

Numa e noutra trincheira, cavadas a um ritmo que nem na Flandres durante a I Guerra Mundial foi visto, reduziu-se o debate ao “achismo” da ministra do Trabalho e Segurança Social, às situações-limite que podem não configurar abusos, às fraudes que ninguém tem conseguido quantificar e à modalidade preferida do portuguesinho burguês exaurido: a partilha da experiência pessoal. Por que razão haveremos de considerar o que nos dizem os organismos internacionais competentes quando, ao invés, podemos ascender ao Olimpo emocional provocado por um tweet que “viralizou” e presumir que, a partir do X, se consegue elaborar um Código do Trabalho que nos traga a luz?

Aparentemente, Maria do Rosário Palma Ramalho terá dado ouvidos aos lamentos de patrões cansados de custear os desmandos de mãezinhas que terminavam a jornada de trabalho mais cedo para irem amamentar o rapagão lá de casa, antes do treino de futebol ou da aula de karaté. Segundo o expedito trabalho dos nossos maiores jornalistas de investigação, essas queixas serão residuais. O que não quer dizer não exijam denúncia, investigação e sanção, mas adiante.

Além da lagrimazita de ocasião e de uma certa solidariedade saloia com a prevaricação que é paga por terceiros – se assumida pela firma, ainda melhor –, há alguns pontos que exigem reflexão. A atual lei é clara: “A mãe que amamenta o filho tem direito a dispensa de trabalho para o efeito, durante o tempo que durar a amamentação.” Não havendo amamentação, e estando ambos os progenitores a trabalhar, “qualquer um deles ou ambos, consoante decisão conjunta, têm direito a dispensa para aleitação, até o filho perfazer um ano”. A dispensa diária “é gozada em dois períodos distintos, com a duração máxima de uma hora cada”, salvo se outro regime for acordado entre trabalhador e empregador.

Ora, perante o que existe e o que veio a público, não me parece que o Governo tencione eliminar o direito de nenhuma mãe/pai a amamentar ou a aleitar. Pretende, sim, apertar a malha à chico-espertice, que, entretanto, já ouvi o herege Manuel Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, corroborar. Em segundo lugar, ouçamos a Organização Mundial de Saúde, que recomenda que os bebés sejam alimentados, sempre que possível em exclusivo, com leite materno até aos seis meses. A partir daí, começa a diversificação alimentar. Ora, com um ano, dois, três, o que for, a amamentação será um complemento ao resto da alimentação, o que, em tese, a torna compatível com a jornada de trabalho dos pais.

Objetivamente, aos dois anos (limite que o Governo estabelece para a redução de horário dos pais), as crianças não precisam de ser amamentadas em horário de expediente dos pais. Salvo, claro, questões imponderáveis, às quais qualquer decisor razoável deve ser sensível.

Diferente, como bem sublinhou Carmen Garcia, é o quadro vigente no que toca à duração das licenças de parentalidade e a possível redução das jornadas de trabalho para quem tem filhos pequenos – mamem ou não. Preferindo eu que seja o Estado, através da Segurança Social, a financiar as suas opções de política social, o problema é real e exige soluções que abranjam todos os pais, sem negligenciar os que não estão inseridos no sistema geral de previdência. Esse será tema para outro artigo. Para lá da amamentação e de outras distrações.

Consultor de comunicação

Diário de Notícias
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