Almirante a bombordo

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No momento em que escrevo estas linhas a nova polémica a envolver o Almirante Gouveia e Melo está ao rubro e o já famoso livro ainda nem saiu. A irascibilidade do candidato à Presidência da República viu dois grandes momentos: ficou “danado” com uma notícia do Expresso e repudiou a recente notícia da Lusa, rematando com um “na política e no jornalismo não pode valer tudo”. É bom saber que o candidato tem consciência que não pode valer tudo. Mas há que valer alguma coisa. E vou poupar os leitores às interpretações da língua portuguesa que tanto está no cerne da discussão (o que prova uma coisa: as aulas de Português têm sido demasiado deficientes a nível de interpretação já de há muitos anos…). Gouveia e Melo na entrevista diz: “Foi nesse período que saiu o artigo no Expresso a dizer que eu estava a chantagear o Governo…”, ao que a jornalista Valentina Marcelino questiona: “Foi esse o momento exacto da sua decisão de se candidatar? Um artigo de jornal?”. A resposta do Senhor Almirante, que podia ser facilmente “Sim” ou “Não”, foi mais rebuscada, mas igualmente elucidativa: “Foi esse artigo que me fez definir o rumo. Porque quando o li, fiquei mesmo danado”. Bom, primeira ilacção: o Almirante andava perdido (ainda não sabe se gosta da política a estibordo ou a bombordo, está a ser-lhe difícil definir-se). Foi um artigo num jornal que o fez “definir um rumo” na vida. É sempre bom saber que o jornalismo serve para dar rumo à vida das pessoas. Segunda ilacção: Gouveia e Melo ferve em pouca água e toma decisões a quente. Ficou danado, definiu o rumo. É mesmo uma pessoa deste perfil que se deseja para o maior cargo do país? Mas o que estranha nem é tanto isto, porque alguém pode sempre mudar de ideias, mesmo que seja para a sua contrária (já é sobejamente conhecido que o Almirante pedia uma corda para se enforcar se fosse dedicar-se à política para, quatro anos depois, achar que deve ser o Presidente da República). O que me causa alguma preocupação é o que afirma depois na entrevista: “(…) queriam dar-me importância sem me darem poder para fazer nada. (…) Foi aí que decidi: vou entrar no campo das verdadeiras decisões, a política.” Primeira conclusão: o Senhor Almirante construíu uma carreira atingindo as maiores posições na Marinha e uma das mais importantes posições na estrutura militar em Portugal sem nunca ter tido as responsabilidades das “verdadeiras decisões”. Quis deixar esse rumo para dedicar-se à política, o que confirma que, não só é totalmente inexperiente em lidar com posições que tomam decisões a uma escala nacional, como nunca o fez antes e não está preparado para isso. E na base desta acepção está a sua completa ignorância sobre o que realmente faz um Presidente da República. Confunde a acção de decisão e de responsabilidade de um primeiro-ministro ou, até, um presidente de câmara ou de junta com a de um presidente da República. Alguém que esclareça o Senhor Almirante da verdadeira natureza dessa posição e das suas exactas responsabilidades para que, antes de ter mais um ataque de fúria ou ficar “danado” e disparatar contra a imprensa, pense nas palavras e nas respostas que deve dar. Uma das características de um Chefe de Estado é a calma com que deve enfrentar qualquer situação. E, nesse teste, o senhor Almirante não passou. E, já agora, saber Português o suficiente para não dar azo a várias interpretações.

Professora auxiliar da Universidade Autónoma de Lisboa e investigadora (do CIDEHUS).

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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