Alemanha, ano zero

Entulho, montes dele. Entulho a perder de vista, toneladas e toneladas de cimento armado, de detritos, de cidades arrasadas, um vasto mar de ruínas. Se todo o entulho da Alemanha do pós-guerra fosse empilhado num só monte, de 300 por 300 metros de largura, ele alcançaria uma altitude de 4000 metros, maior que muitas montanhas. A queda do regime nazi deixou atrás de si qualquer coisa como 300 milhões de metros cúbicos de entulho e, só na cidade de Berlim, as ruínas acumuladas, na ordem dos 55 milhões de metros cúbicos, dariam para erguer uma muralha de 30 metros de largura e cinco metros de altura desde a capital do Reich até Colónia, atravessando a Alemanha inteira. Em Dresden, o vaivém dos comboios que carregavam o entulho só cessou em 1958, mas os trabalhos de remoção, feitos à mão e à picareta, apenas terminariam em 1977, 35 anos depois do final da guerra. Pensemos nisto: a maioria dos leitores destas linhas já era nascida e crescida quando na Alemanha se removiam ainda os últimos despojos da 2ª Guerra - como será o futuro da Ucrânia?

Ao longo de décadas, e especialmente nos anos do imediato pós-guerra, milhares e milhares de pessoas carregaram pedras, blocos de cimento, ferros retorcidos, no meio de uma poeira densa e intensa, por vezes letal. Muitos dos que removeram as ruínas tinham sido aqueles que as provocaram, antigos membros do Partido Nacional-Socialista obrigados ao labor de limpeza, mas muitos mais foram voluntários, ainda que por necessidade, já que em diversos lugares só se distribuíam senhas de racionamento àqueles que tivessem trabalhado no transporte do entulho omnipresente.

Em Berlim, na zona de Berlin-Mitte, eram 13 mil voluntários, em Friedrichshain outros oito mil. No horizonte cinzento, lá no cimo das ruínas, destacavam-se as Trümmerfrauen, as "mulheres do entulho", que frequentemente trabalhavam com a roupa que tinham no corpo, por vezes trajes requintados ou vestidos de cerimónia, os únicos que tinham salvo da derrocada e das chamas. Dos voluntários de Berlim, 26 mil eram mulheres, só nove mil eram homens, num esforço hercúleo e heróico que muito fez para restaurar a autoestima de uma nação traumatizada pelo nazismo, além de ter destruído o ideal hitleriano do Kinder, Küche, Kirche, que aprisionava as mulheres ao cuidado do lar e à produção de filhos. A escassez de braços masculinos e a dimensão colossal da reconstrução, aliadas à necessidade de angariar sustento e produtos básicos, levou as mulheres para as ruas, nem que fosse de picareta e balde na mão. Outras, em trabalhos de modelos para revistas de moda, deixaram-se fotografar com as ruínas ao fundo, ou no meio delas, numa prova de que a imaginação e o engenho humanos tudo conseguem, sendo capazes até de dar glamour à tragédia.

Mais espantoso ainda é sabermos que, em muitos lugares, a gestão dos escombros e a logística da reconstrução começaram antes mesmo do fim da guerra, durante a agonia e o estertor do nazismo. Em 23 de Abril 1945, o município de Mannheim publicou a proclamação oficial "Estamos a Reconstruir" e iniciou os trabalhos de limpeza, exemplo seguido em muitos outros pontos do país. Em Berlim, o entulho foi sendo encaminhado para os descampados junto à antiga fábrica de armamento e, ao fim de pouco tempo, formava já a maior elevação de toda a cidade, a que chamaram Teufelsberg, a "montanha do diabo". Em Frankfurt, a remoção e reciclagem do entulho foram entregues a uma virtuosa parceria público-privada, de nome comprido e impronunciável, a Trümmerverwertungsgesellschaft, que em 1952 já apresentava lucros e que permitiu que a cidade se erguesse dos escombros a uma velocidade recorde, diz-nos Harald Jähner num dos melhores livros que li o ano passado, em tradução inglesa e por sugestão amiga de Manuel Carvalho: Aftermath. Life in the fallout of the Third Reich, 1945-1953 (Penguin, 2021). Se tivesse de recomendar a um editor português um livro para publicar cá este ano, seria este, sem sombra de dúvidas.

Além de cenário para produções de moda, os despojos do III Reich converteram-se em objecto turístico, com excursões organizadas, e artístico, com a "beleza das ruínas" a tornar-se tema poético para autores como Elisabeth Langgässer ou motivo e paisagem de pintores como Werner Heldt. A destruição reinante, com vastas extensões de detritos e cidades repletas de edifícios descarnados, era uma metáfora terrível, mas perfeita, da catástrofe do nazismo, surgida não apenas com os bombardeamentos dos Aliados, mas já presente e evidente desde os primeiros momentos da ascensão de Hitler ao poder, quando o Führer era aclamado por milhões de alemães em delírio. As ruínas prestavam-se também, obviamente, a divagações metafísicas sobre a finitude trágica da condição humana, ou terrena, e fotógrafos como Richard Peter e Hermann Classen exploraram ao limite a estética da desolação, recuperando o imaginário da vanitas e a retórica flagelante do barroco da Contra-Reforma.

Movendo-se num horizonte de devastação e ruína, milhões de seres humanos deambularam perdidos, vagueando no meio do caos. No Verão de 1945, dos 75 milhões de pessoas que viviam no território do antigo Reich, 40 milhões estavam deslocadas, ou seja, mais de metade dos habitantes da Alemanha não vivia nos seus lugares de origem. Desses 40 milhões, 10 milhões eram soldados, prisioneiros de guerra que foram sendo libertados durante mais de um ano, até finais de 1946. A esses, acresciam 3,5 milhões presos na União Soviética, e outros 750 mil detidos em França, um drama descrito no livro Outras Perdas, de James Bacque (Edições Asa, 1995), mas de que pouco se fala. Entre a população civil, mais de nove milhões de seres humanos tinham fugido para as zonas rurais e, provavelmente, outros tantos andavam à deriva pelas cidades, cruzando-se com milhões de estrangeiros recém-libertados dos campos de concentração. Muitos desses campos, aliás, seriam usados pelos Aliados para internar os seus prisioneiros de guerra, quase sempre em condições dramáticas, em convívio com muitos judeus que ainda lá permaneciam: o relatório Harrison, redigido por um enviado especial do Presidente Truman, afirmou, sem rodeios, que os Aliados tratavam os judeus exactamente da mesma forma como os nazis os trataram, somente não os matavam. Na Polónia e em vários lugares, os judeus libertados de Auschwitz e de outros campos de extermínio enfrentavam agora um novo drama, a fúria antissemita da população civil, que ainda em Julho de 1946 perpetrava pogroms com dezenas de mortos.

A guerra destruiu mais de 45% dos lares alemães, criando milhões de sem-abrigo que se dispersavam tanto pelas cidades como pelos campos, não sendo ao acaso que, como refere Harald Jähner, as malas de viagem se tornaram num dos objectos mais disputados na Europa do pós-guerra. Nas gares dos comboios, junto às linhas férreas, nos túneis e nos adros das igrejas, amontoavam-se, como entulho humano, hordas de famintos, mulheres e órfãos perdidos, golpistas do mercado negro, criminosos e rufias, proxenetas, soldados desmobilizados, carregados de traumas de guerra. Em Novembro de 1945, um bando de ex-prisioneiros polacos invadiu uma casa em Bremen e abateu a tiro os 13 membros de uma família, naquele que foi apenas um entre milhares de casos com que os Aliados e as novas autoridades tiveram de lidar, por vezes de forma impiedosa e drástica. Além de milhares de antigos prisioneiros dos campos, brutalizados por anos de trabalho escravo e de abusos, e instintivamente inclinados para a prática da violência e para o crime, viam-se agora mães de família forçadas a prostituir-se ou a liderar os seus filhos em pequenos furtos nos comboios, nas lojas, nas ruas.

Num movimento que os académicos da época classificaram de "desprofissionalização da criminalidade", famílias inteiras de antigos burgueses converteram-se em quadrilhas delinquentes, sofisticadas e audazes, indiferentes às pesadas penas impostas pelos Aliados. Outros, como o futuro filósofo Hans Magnus Enzensberger, então um rapaz de 17 anos, faziam fortunas a traficar no mercado negro, usando os cigarros como moeda de troca; a dado trecho, os serviços de racionamento de Berlim estimaram que entre um terço a metade de todos os bens transacionados na cidade tinham proveniência ilícita. Na sua controversa homilia de Ano Novo de 1947, no decurso do "Inverno da fome", um dos mais frios e inclementes do século XX, o cardeal Frings, de Colónia, foi ao ponto de justificar, à luz da Bíblia, os actos daqueles que, por absoluta necessidade, roubassem o estritamente necessário ao seu sustento, proclamação que levou a que se vulgarizasse o termo "fringsar" como eufemismo de furto ("fringsei um bocado de carvão", "vou fringsar umas salsichas"). Ao instaurar uma nova moral, baseada na sobrevivência e no salve-se quem puder, o pós-guerra obrigou milhares de cidadãos, outrora ordeiros e respeitadores da lei, a reverem os seus conceitos de bem e de mal, de certo e de errado, como se o mundo, de súbito, estivesse virado do avesso. E estava.

O reencontro das famílias nem sempre foi feliz, longe disso. Cobertos de cicatrizes no corpo e na alma, os homens que regressavam da frente, onde tinham presenciado ou perpetrado atrocidades terríveis, descobriam agora que, na sua ausência, as mulheres haviam refeito a vida com outros companheiros ou que tinham assumido a chefia dos lares e não estavam dispostas a abdicar dela, submetendo-se de novo ao poder dos machos. Para mais, o típico Heimkehrer, o "regressado a casa", além de violento e brutal, não vinha aureolado da vitória, antes trazia consigo o amargo sabor da derrota, o travo da humilhação. A sua simples presença, dentro de casa ou nas ruas, era um permanente lembrete de que a Alemanha tinha perdido a guerra de forma vergonhosa e trágica.

Como se não bastasse, muitos dos casamentos do tempo da guerra tinham sido celebrados às pressas, durante breves licenças, por noivos que mal se conheciam, por soldados que casaram só para escaparem uns dias da frente, por mulheres que apenas sonhavam com uma pensão de viuvez. Muitas haviam sido violadas em massa pelos invasores, especialmente os russos (estima-se que dois milhões de mulheres alemãs tenham sido violadas, muitas das quais repetidamente), obrigando a uma liberalização pontual do aborto; outras tinham caído nos braços dos G.I."s americanos, que ora lhes davam um fugaz e escapista alívio em noites de sexo ocasional e de festa, ora lhes traziam a promessa de uma vida melhor no Novo Mundo (ao longo das décadas seguintes, quase 200 mil mulheres alemãs obtiveram a cidadania americana por terem casado com soldados dos EUA). Em Berlim-Zehlendorf, num só dia de Fevereiro de 1947, 600 raparigas fizeram fila para serem inspecionadas pelas autoridades sanitárias americanas com vista a obterem o "passe social", o certificado que lhes permitia relacionarem-se com os G.I."s. As revistas femininas, mas também os jornais de grande tiragem, começaram a falar abertamente de divórcio, este disparou em flecha, duplicando em relação aos níveis pré-guerra, com um pico em 1948, enquanto os comandos dos Aliados faziam divulgar cartazes de alerta contra a "Veronika Dankeschön", a alemã fácil cujas iniciais "V.D." eram as mesmas de "venereal disease".

As autoridades de saúde de Berlim decidiram mesmo encomendar ao realizador Peter Pewas um filme didáctico sobre os perigos da promiscuidade sexual: estreado em 1948, Strassenbekannshaft ("Conhecidos na Rua") mostra os dramas de Erika, uma jovem de 20 anos que mora com uns pais austeros, e que escuta os maus conselhos de uma amiga devassa, Else, que aceitara relacionar-se com um homem mais velho a troco de um par de meias novas. Em tudo isto, as mulheres, como sempre, foram as maiores sacrificadas: depois das agruras da guerra, viviam agora os tormentos da paz, com maridos que regressaram aos lares para uma nova batalha, doméstica mas não menos feroz, dirigindo o ódio e as frustrações acumuladas na frente contra as suas esposas e os seus filhos, em incontáveis episódios de violência e sangue.

E, no entanto, a vida continuava a fluir, até com instantes felizes. Como é hábito, muitos fugiram aos horrores do quotidiano através do desbragamento e do excesso, em festas ruidosas nas caves e nos cabarés, em clubes com bandas de jazz, até no meio de escombros onde ainda se sentia o odor a cadáveres e a carne queimada. As autoridades discutiram se deviam organizar as festividades do antigamente, como o Carnaval ou outros cortejos públicos, e a Igreja promoveu procissões, solenidades várias. Em muitos lugares, especialmente no sul da Alemanha, foram os próprios Aliados que incentivaram o regresso do Carnaval e de outros festejos populares, fosse no intuito de dar um módico de alegria à população destroçada, fosse com o propósito, diziam, de a "desprussianizar" e desmilitarizar. Por muito estranho que pareça, 15 dias depois da entrada dos soviéticos em Berlim, reabriram 127 cinemas na capital do Reich, com afluências de 80 a 100 mil espectadores por dia, e as esplanadas dos cafés da Kurfürstendamm encheram-se de clientes, saudando um dos Verões mais soalheiros e mais quentes de que havia memória. Escasseavam os homens, é certo, pois a guerra ceifara cerca de cinco milhões de soldados e outros 6.5 milhões permaneciam presos pelos Aliados: em 1950, o desequilíbrio era ainda de 1.362 mulheres para 1000 homens, proporção que aumentava nas camadas mais jovens, a dos mancebos tombados em combate, e, sintomaticamente, quase 100% dos homens nascidos entre 1920 e 1926 conseguiram encontrar noiva e casar. Nos bares e nos bailes, as mulheres tinham de dançar com mulheres e, apesar da libertação conquistada efemeramente no pós-guerra, o patriarcado voltou a impor-se: em 1949, só 8% das mulheres bávaras tinham um papel activo nas instituições públicas, incluindo as comunidades ligadas às igrejas, e apenas 1% militava num partido político.

A guerra acelerou o tempo, fez das crianças homens, obrigou a que uma geração inteira entrasse na idade adulta sem passar pela adolescência. As zonas rurais viram-se repentinamente invadidas por milhões de pessoas vindas das cidades, com hábitos e estilos de vida muito mais "livres" e "progressistas", impondo um convívio eivado de tensões e disputas, do mesmo modo que as movimentações de expatriados de nacionalidades ou origens diversas, gente que até há pouco se guerreara, reacenderam a xenofobia e o racismo, provocaram conflitos regionais e bairristas que ameaçaram estilhaçar a unidade alemã. Na Baviera chegou a sugerir-se que os deportados vindos da Prússia fossem mandados de volta para leste, rumo à União Soviética, até mesmo para a Sibéria.

Reabriram-se, do mesmo passo, querelas antigas, velhas de séculos, dissídios familiares, confrontos religiosos entre católicos e protestantes, crentes e não-crentes. Só em 1966, 20 anos depois do final da guerra, foram demolidos os últimos abarracamentos para instalação de deportados, a que os alemães davam nomes depreciativos como "Pequena Coreia", "Nova Polónia", "Mau-Mau" ou "Pequena Moscovo". Em todo o caso, numa lição hoje mais actual do que nunca, essa enorme massa de gente, vinda de toda a parte, com línguas e origens diversas, foi uma das principais forças motrizes do miraculoso renascimento alemão do pós-guerra. Por necessidade de sobrevivência, pelas redes que entre si teceram, pela sua maior capacidade de sacrifício e de adaptação, pelo seu formidável dinamismo e pela sua entrega ao trabalho, os deportados colmataram as falhas e os desequilíbrios demográficos causados pela guerra e contribuíram, como poucos, para que a Alemanha se reerguesse do pó e das cinzas.

O "milagre" foi económico, sem dúvida, mas acima de tudo social e moral. Nele influíram muitos e vários elementos, alguns deles surpreendentes, como o facto de a capacidade industrial da Alemanha ter sido muito menos afectada do que geralmente supomos - mais de três quartos da indústria germânica foram poupados pelos bombardeamentos dos Aliados. Houve, para além disso, a reforma monetária de 1948 e a miraculosa substituição do marco do Reich pelo Deutschmark, a qual, entre o mais, envolveu a destruição, de um dia para outro, de 93% da antiga moeda e a entrada em vigor de 500 toneladas de novas notas, no valor de 5.8 mil milhões de marcos, o maior feito logístico desde o desembarque da Normandia, dirigido, imagine-se, por um jovem de 26 anos, o tenente Edward Tenenbaum, que pouco antes tinha sido um dos dois primeiros soldados Aliados a entrarem no campo de Büchenwald.

Houve também a ajuda do Plano Marshall, ainda assim menor do que a concedida à Grã-Bretanha ou a França, e houve a guerra da Coreia, a favorecer o comércio e as exportações. E, apesar da perigosa ameaça da extrema-direita em algumas eleições regionais, como na Baixa Saxónia, prevaleceu a moderação e o consenso, com lideranças estáveis e esclarecidas, quer na política, com Adenauer, quer na economia, com Ludwig Erhard (o "pai" da economia social de mercado), quer nas empresas, com Heinrich Nordhoff, o patrão da Volkswagen. Houve também uma administração eficiente, prestigiada, e dirigentes regionais e locais e autarcas que, em articulação com os Aliados, muitas vezes escolhidos por eles, compreenderam aquele desafio histórico e souberam mobilizar uma nação que, entre o mais, se encontrava depauperada de infra-estruturas e de quadros técnicos, com milhares de engenheiros e investigadores emigrados na América ou na União Soviética.

Por fim, mas não por último, houve uma classe média forte, que garantiu um mínimo de coesão social no meio do caos reinante: se era um exagero dizer-se, como o fez Adenauer, que as diferenças de classe tinham desaparecido na Alemanha do pós-guerra, o facto é que, na reforma monetária de 1948, foi dada a todos os alemães, sem excepção, a mesma quantia de 60 marcos. Hoje, tudo isso é passado: em 1960, os dirigentes das empresas americanas ganhavam 20 vezes o salário de um trabalhador médio; actualmente, ganham 400 vezes mais.

Helmut Kohl referiu-se um dia à "bênção do nascimento tardio", a felicidade única das gerações que viram a luz já depois do final da guerra e que, por isso, gozaram a ventura de não terem presenciado o conflito bélico, o holocausto dos judeus, as agruras da reconstrução. De não terem vivido um tempo em que, com as linhas férreas arruinadas, uma viagem de comboio de Berlim a Munique era capaz de durar nove dias. Um tempo em que as coisas banais e vulgares, simples objectos do quotidiano, como um chapéu ou um casaco, um canivete, uma bengala, adquiriram subitamente o valor de tesouros preciosos, guardados como raridades, disputados com frenesi e violência. Um tempo em que cada alemão só tinha direito, na melhor das hipóteses, a 1550 calorias de alimentos por dia, um valor que corresponde apenas a 65% do considerado básico para a nutrição de um adulto (na esmagadora maioria dos casos, porém, a ração diária não ultrapassava as 800 calorias).

Em Dezembro passado, a Sociedade de Língua Alemã escolheu o termo Zeitenwende como "palavra do ano" de 2022. A expressão, usada num célebre discurso de Olaf Scholz sobre a invasão da Ucrânia, assinala a transição histórica e o novo tempo que a Alemanha se prepara para viver, o que, tratando-se da potência-líder da Europa, significará uma viragem para todos nós, gostemos ou não da mudança. O chanceler de Berlim viu a luz em 1958 e, por isso, está ungido pela "bênção do nascimento tardio", mas é possível, até provável, que, quando falou em tempos novos, tivesse em mente tempos passados, os da reconstrução do pós-guerra, frugais e austeros, prenhes de sacrifícios. Muitos duvidam, e com razão, que as gerações do presente sejam capazes ou estejam sequer dispostas a regressar ao "espírito de 45", como lhe chamou o cineasta Ken Loach. Talvez seja possível evitar o pior, talvez consigamos escapar a tantos dramas, àquela catástrofe imensa, mas para isso será preciso jeito e sorte, e sobretudo vontade.

A outra expressão que a Sociedade de Língua Alemã escolheu como "palavra de 2022" foi Krieg um Frieden, a "guerra pela paz". Até Fevereiro do ano passado, até à bárbara invasão de Putin, julgávamos ser abençoados pelo nascimento e pela História, vivíamos na ilusão de que, no efémero tempo das nossas existências, jamais teríamos de lutar pela paz, a nossa paz, não a dos russos ou dos ucranianos. Num ano, tudo mudou. É bom que saibamos isso.

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