Ainda a cultura inculta: um livro contra os analfabrutos (parte 2)
Na memória
de Maria Almira Soares
Para Elisa Costa Pinto,
Vera Saraiva e Paula Fonseca
Escrevi há duas semanas sobre um livro de Allan Bloom, A Cultura Inculta (1987), mas neste Directo à Leitura de hoje, julgo que ainda vamos a tempo de falar de um outro livro essencial e que, a pretexto do que escrevi há 15 dias, será essencial, porque pode ser útil quando reflectimos sobre Educação e Cultura. De resto, se coloco a questão neste pé - Educação e Cultura - é porque será óbvio para muitos que não faz sentido falar-se de escola, ensino, universidade, ciência, progresso, desenvolvimento, cidadania, democracia, inclusão, conhecimento se, como é hábito, excluímos da equação a ideia de cultura. E é precisamente sobre um livro de António José Saraiva (1917-1993) que urge falar.
Professor universitário, afastado, em 1949, por razões políticas, do ensino em Portugal (era um destacado opositor ao regime fascista de Salazar), foi bolseiro no Collège de France, investigador do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris e professor catedrático da Universidade de Amsterdão. Em 1975, quando regressou a Portugal como professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e, depois, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, deixou uma marca indelével nos seus alunos e colegas de profissão.
Vigoroso e original, autor de uma obra extensa - muitos ainda se lembrarão de que é ele, com Óscar Lopes (1917-2013), o autor da célebre História da Literatura Portuguesa, até há uns bons anos livro indispensável para as aulas de Português (e até de História) - o que este pequeno livro tem para nos oferecer em tempo de cultura inculta é muitíssimo.
Trata-se de um livro pequeno (sigo a edição da Difusão Cultural, colecção ‘Descobrir/ Pensar’, de 1993), a bem dizer, um opúsculo dividido em duas partes. Há também uma edição com chancela da Gradiva, integrando este livrinho a obra completa de António José Saraiva. A grandeza deste pequeno livro resulta, porém, e ao contrário dos profundos e longos estudos de outros livros seus (A Cultura em Portugal, com dois volumes; Para a História da Cultura em Portugal, também com dois volumes, ou o inescapável A Tertúlia Ocidental, ensaio de referência para se compreender a Geração de 70) de ser acompanhada também por uma entrevista realizada pela então assistente da Faculdade de Letras, a Dr.ª Leonor Curado Neves.
Quando hoje muitos pais e professores (e alguns estudantes) se perguntam como e o que ler, julgo que um livrinho destes, tão claro e tão profundo, tão cheio de ideias sensíveis e de sensatas análises da realidade, deveria ser de leitura obrigatória. Que mal faria a estudantes do Secundário (e mesmo do 3º ciclo), ou da Universidade, independentemente das áreas específicas, ler os breves ensaios de que se faz este volume? Ensaios breves, mas de uma sagacidade e cultura sólidas. Logo o primeiro, “O que é a cultura? Definições” (p.11) nos dá uma grande angular sobre o magno problema de se saber - hoje na escola, como na vida - o que seja cultura. Responde António José Saraiva: “Cultura opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objectos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito. A fala é já uma condição de cultura.” Por aqui se podia e devia começar qualquer ano lectivo, julgo.
Porque é precisamente a ausência de uma definição clara do que seja “cultura” que acaba, neste tempo de disrupção do próprio sentido da escola e de violência generalizada (é preciso lembrar o que aconteceu na Azambuja, sintoma preocupantíssimo da cultura de morte e de violência que hoje uma larga maioria sente ser a realidade de facto do ensino?), por levar a que muitos estudantes (e não poucos professores) não compreendam que a educação não é o lugar do alisamento das diferenças, nem das hierarquias e que defender-se a democracia não é sinónimo de se transformar os espaços escolares e a universidade em lugares onde a anarquia medra e viceja.
É que se cultura é o antónimo de natureza, no sentido extenso, cultura é, no sentido estrito, o que diz respeito a uma elevação espiritual. A um saber ser e a um saber estar. No fundo, sem cultura, pode o homem distinguir-se dos restantes animais que, naturalmente, vivem de forma selvagem na natureza? Um paradoxo que, recentemente, Yuval Harari, no seu livro acabado de sair, explora, tem que ver com isto: como é que este animal cultural, o Homem, produtor de arte, possuidor de linguagem, se encontra hoje à beira de cometer uma guerra que pode levar à sua autodestruição?
O livro de António José Saraiva, deve ser rapidamente reeditado até por outra razão: nos 13 breves capítulos por que se estrutura, há um fio condutor que dirá muito aos professores: todas as perguntas de que se fazem esses 13 andamentos são, no fundo, as 13 questões gerais com que os estudantes se confrontam. “Cultura e linguagem”; “A poesia oral”, “A Escrita”, “O sagrado”, “A Torre de Babel”, “Religião e Ética”, “O Homo Ludens”, “A Retórica”, “A Literatura”, “A ciência antiga e a ciência moderna”, “Como nasceu a moeda” e o “O problema do progresso” - eis as questões sob a forma de afirmações.
Se tal é possível, estes capítulos são afirmações de retórica e, no fundo, as perguntas a que todo o professor, na relação pedagógica que constrói, poderá responder, seja em ciências ou em economia, em letras ou em artes. No fundo, como referi no artigo de há duas semanas, se a máquina montada na Educação é a da estupidificação programada, só mesmo na formação de professores, com livros como este e o de Allan Bloom, será possível fazer das aulas esse acto cultural significativo.
Pensando muito para além dos Exames Nacionais e dos critérios, das grelhas com que o professor fica literalmente “grelhado”, reitero: só mesmo com a descoberta de livros como O Que é Cultura (e da mesma colecção lembro o de Alexandre Melo, O Que é Arte? ou o de Eugénia Vasques, O Que é Teatro?) poderá a Educação ser ainda o passaporte com que crianças e adolescentes e uma larga camada dos professores em exercício sobreviverão ao mecanicismo mais alienante. Só uma Educação com cultura pode defender-se da verdadeira formatação bélica de que todos nós (passivos contribuintes das guerras, meros servidores da máquina invisível do deus-dinheiro) estamos a ser alvo.
Na entrevista que fecha o livro, pergunta-se a António José Saraiva sobre a democratização do ensino e da cultura. Responde o professor: “A expressão ‘democratização do ensino’ tem dois significados: um, é a divulgação do saber, outro, é a facilitação do diploma” (p.77). Diz mais e com isto termino: “Ter ou não ter um diploma não é uma questão de saber, mas de estatuto social e numa sociedade que quer ser igualitária não se compreende que sejam exigidas condições para se ascender ao estatuto de privilegiado.” Direi eu: de que valerá um diploma numa sociedade de analfabrutos que dispensa a aprendizagem com cultura?
Escreve sem aplicaão do novo Acordo Ortográfico.