Há algo que a existência do Chega força os partidos da restante direita a clarificar: a sua posição em relação ao regime. E os sinais, até agora, não são animadores. Rui Rio, após pagar nas urnas a sua ambiguidade sobre o partido de André Ventura, conferiu legitimidade a uma putativa vice-presidência do Chega na mesa da Assembleia da República. Na Iniciativa Liberal, evocou-se "a tradição" para alinhar pelo mesmo diapasão e comparou-se Diogo Pacheco Amorim aos deputados do PCP que assumiram previamente o cargo. O CDS, por razões evidentes, não foi questionado sobre o tópico, não sendo difícil adivinhar a sua resposta. Ao crescimento da extrema-direita, a direita democrática continua a jurar que "não, não, não" e a pensar que "sim, sim, sim". Quem o observar será imediatamente catalogado como agente do "politicamente correto", da "superioridade moral" e restantes rótulos que não servem para mais do que evitar uma discussão que importa ter..Estando longe de favorecer as esquerdas, não ignoro as diferenças entre o Chega e o Partido Comunista. O primeiro deseja uma nova República, uma nova Constituição e um novo país, "para os portugueses de bem". O segundo fundou a atual República e defende exaustivamente a sua Constituição. Por mais que os saudosismos históricos de cada um sejam deploráveis - o PC e a União Soviética; o CH e o salazarismo -, o que os distingue não é o que pensam sobre o tempo que passou, mas sobre o tempo que aspiram concretizar. Os comunistas, depois do inferno que causaram até ao 25 de novembro, integraram-se em pleno no regime. Os homens do Chega, desde que surgiram em 2019, não se cansam de pedir o seu fim. É isso que os separa. E isso que deveria afastar a direita democrática, em particular a que ajudou a esculpir o regime, daqueles que pretendem acabar com ele. As origens ideológicas do CDS (Adelino também escrevia sobre uma Quarta República), o papel histórico do PSD (de ruturas contra o regime feitas pelo regime) e a dimensão antissistema da IL dificultaram, contudo, esse afastamento. E os resultados das legislativas antecipadas deste ano só o aprofundarão. Por um lado, por provarem que a direita desunida perderá inevitavelmente para o Partido Socialista e para o método d"Hondt. Por outro, pelo alvo irresistível que a maioria absoluta do PS representará enquanto símbolo dos vícios do regime. Contra o absolutismo do incumbente, multiplicar-se-á a oposição dos insurgentes..Chegados ao cinquentenário da Terceira República, daqui a dois anos, o povo terá na Assembleia um governo orgulhoso dessa República e uma oposição - da esquerda à direita - profundamente descontente com o estado dessa República. O desafio da direita, até lá, é decidir se aceita a mudança de regime, que Ventura propõe, ou se ambiciona protagonizar mudanças no regime, que a maioria absoluta obrigará António Costa a tentar..Estando nós tão próximos dos cinquenta anos de Abril, o surpreendente voto de confiança dos portugueses no Partido Socialista não deixa de parecer um derradeiro grito de súplica para que o regime se mexa, se reforme e se realize. Se Soares, há trinta anos, quis tornar a Democracia uma casa que todos incluísse - de Spínola, que reabilitou, a Otelo, que amnistiou -, a missão de Costa e Marcelo nos próximos quatro não será menos exigente: reconciliar a República consigo mesma, diante de uma enorme plateia de insatisfeitos.. Colunista