Poema de José Gomes Ferreira (1901-1985) e que integra as Canções Heróicas, de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), este não é apenas um poema político, de convocação dos homens adormecidos que vão embalando a dor “dos silêncios vis”; nem é sequer - por muito que o seja também - um grito meramente conotado com a luta entre o fascismo e as correntes socialistas no quadro geral do combate ideológico entre o nazi-fascismo, ou os totalitarismos de quaisquer espécie, e as correntes democratas e sociais progressistas. O poema e a música estão noutro plano de intervenção, ou procuram ser - hoje ainda - uma caixa de ressonância dos anseios colectivos, mundiais, dos povos humilhados pelos tiranos de ontem, de hoje e de sempre. O que o sujeito da enunciação pretende é fazer com que as almas viris arranquem a flor “que dorme na raiz”, num gesto que firma a virilidade de um gesto - arrancar, eis o verbo - a par da atenção prestada à flor. Nenhum acto viril é digno se a sensibilidade, pode-se mesmo dizer, a ternura, a compreensão, são palavras e sentimentos divorciados do acto de arrancar ou de despertar da modorra dos dias a nossa consciência alienada. O poema e a música - que deve ser sempre entoada à capela, como quis Lopes-Graça em concordância com o militarismo de José Gomes Ferreira - são, na história da poesia e da composição musical-popular em língua portuguesa um desses momentos raros em que é essencial pesar de novo as palavras. Cantá-las com peso. Com a dicção e a energia certas. O poema, que é um hino, um hino que é uma oração, uma oração que é convocação e libertação (dos que o cantam e dos que o ouvem), diz ainda isto: “Acordai! Acordai, raios e tufões / que dormis no ar / e nas multidões! / Vinde incendiar / De astros e canções / As pedras e o mar / O mundo e os corações // Acordai! / Acendei, de almas e de sóis, / Este mar sem cais, / Nem luz de faróis! / E acordai depois / Os nossos heróis / Que dormem nos covais. / Acordai!”. Não creio que tanto, como agora, Portugal precisa urgentemente de acordar. Não se trata apenas destas eleições, nem do ambiente geral de ódio entre tudo e todos. É muito mais profunda a nossa crise: para além dos valores da democracia, a crise é verdadeiramente espiritual. Acordar os heróis - se os há - para as lutas finais. Há aqui uma nuance: no poema diz-se que os heróis devem ser acordados “depois/depois das lutas finais”, mas a mensagem é bem outra: devem ser acordados para as lutas finais. Portugal e o mundo estão, julgo, pressinto-o, numa luta final. Trumpismo, populismo, neofascismo, extremismos de sinais vários, dissolução do Estado Social, esboroamento das certezas, império das “fake news”, militarismo, competição desmedida, diluição do conhecimento, obsessão neoliberal, nas escolas e nas universidades, pelo dogma da eficácia, pelo maná da produtividade, pela gestão - métricas, metas, objectivos, performance, desempenho, IA, ditadura dos algoritmos -, estudantes transformados em clientes, professores transformados em meros formadores de estudantes sem espírito crítico algum, chat GPT, misoginia, machismo, cobardia, interesses financeiros, pactos entre oligarquia mundial e governos, todos unidos contra os povos, esmagados pelo novo empreendorismo: ser-se escravo de si próprio, acreditar que o único fito ao longo da vida é o deus-dinheiro, sim, a luta é final. A ditadura dos ecrãs, espelho mágico onde cada um se pergunta se haverá alguém mais belo do que o próprio, o condicionamento invisível da vontade própria - crianças e jovens seguindo os influentes, seguindo as mentiras propaladas cem mil vezes como verdades -, é de acordar que se trata. Acordar as consciências para um verso de Valery: “A velocidade é a loucura”. Por que razão é axial ler? Saber de história? Ir ao teatro? Que interessa saber de música e de história política? Ter memória? Interessa porque há uma palavra que foi roubada às gerações mais novas, incluindo a minha: utopia. Olhamos para o passado e não temos senão esta impressão de esgotamento do presente: não, as revoluções são inúteis. A luta pela liberdade não tem lugar no tempo da teleperformance, das redes sociais. Leio, releio, por estes meses dois romances portugueses: Kaos e Histórias, Memórias, Imagens e Mitos duma Geração Curiosa, de Eduarda Dionísio. O primeiro livro é de 1974, o segundo é de 1981. Escrevo um pouco sobre o de Eduarda. Este romance tem como acção um jantar em Novembro de 1978, com uma justaposição: um ano lectivo. Uma festa de carnaval em 1979 e um pic-nic em Junho desse mesmo ano. As personagens A e B protagonizam uma história que se multiplica em em raízes que vão até à memória do Estado Novo. Raízes que mergulham fundo no país real das famílias rurais, ou das famílias da pequena-burguesia; Raul, Teresa, Maria Cristina, Anabell, Duarte, Alberto, eis os nomes desse Portugal que atravessa a IIª Guerra Mundial, o fascismo, a Guerra Civil espanhola, o Maio de 68… creio que a palavra utopia percorreu essa geração curiosa que, na verdade, é a geração dos pais de Eduarda Dionísio (o pai, o poeta e pintor, crítico literário e ensaísta, ficcionista e professor Mário Dionísio), ou dos avós. Geração curiosa? Sim, curiosa e empenhada em lutar contra a ditadura, contra o orgulhosamente sós de Salazar e a hipócrita primavera de Marcelo. Hoje, em 2025, reeditar este romance é um dever da edição em Portugal. Dá-lo a ler aos jovens de hoje que, ao contrário de outros tempos, se debatem com a ausência de utopia. E sem utopia de uma geração que queremos curiosa, que país teremos? Que literatura? Que justiça? Que ensino? Que liberdade? Que república? Como voltaremos a cantar “Acordai” se não soubermos quem foram José Gomes Ferreira e Lopes-Graça? Se não soubermos já dos nossos heróis contra os corvos, cobras e chacais desta época? Professor, poeta e crítico literário