'Ach, Europa'
O tempo que levo a pensar no que vou escrever na minha crónica semanal não é um tempo perdido: neste verdadeiro dia de reflexão, a leitura da lista dos bilionários que vêm escoltar Trump na sua tomada de posse vem lembrar-me um título de Varoufakis, num livro que há dias folheei na Waterstones de Bruxelas, onde o político grego proclama que o capitalismo morreu, assassinado pelo novo sistema, a que chama “tecnofeudalismo”.
“O capitalismo acabou, mas o que vem aí ainda é pior”, proclama Varoufakis.
Mariana Mazzucato, menos bombástica, confirma a existência de uma renda extorquida à economia global pelas tecnológicas digitais, sem virem acrescentar valor, mas insere este novo avatar na história das transformações do capitalismo.
O tecnofeudalismo de Varoufakis faz dos homens de Silicon Valley os verdadeiros donos da economia mundial, senhores feudais a quem todos nós, como vassalos, pagamos para existir.
Se for assim, então a posse de Trump vem mostrar-nos aquilo que já não tem de se esconder sob o manto diáfano da ideologia: os senhores do mundo são os donos da informação, os cavaleiros da tecnologia digital, os detentores das redes virtuais, que controlam tudo e todos.
Como ainda há e sempre haverá economia real, como todas essas nuvens e mundos virtuais se traduzem em muito concretas e materiais enormes bases de dados, cujo efeito na crise climática não é, aliás, despiciendo, como denuncia Mazzucato, será talvez exagerado o anúncio da morte do capitalismo, mas não pode deixar de nos impressionar esta nova aliança entre o poder do mundo e o poder das redes, entre o mundo hobbesiano da guerra e o mundo maquiavélico das fake news.
Não deixa de nos fazer pensar que, enquanto Trump e, muito provavelmente, Xi Jinping, se movem já no universo do novo capitalismo mundial tecnológico, Putin vive ainda no mundo da geopolítica e das esferas de influência. Nada mais natural: todas as épocas novas trazem consigo restos ou segmentos das épocas passadas, que continuam a agir e a mover-se, mesmo quando o domínio e a hegemonia estão a passar para outras instâncias.
Lembro-me da Casa Branca de Reagan (fui lá em 1984, com o presidente Ramalho Eanes), onde brilhavam com o seu fascínio “the most glamourous movie stars”, na expressão do próprio protocolo norte-americano. No mundo de Trump, o brilho é só o do dinheiro, a força bruta militar continua a ser a força bruta militar, e os novos heróis e senhores do mundo são Musk, Zuckerberg e Bezos.
Resta-nos, como fracos que somos, apostar nas contradições internas dos fortes: Bannon, o ideólogo, o construtor de pontes (o pontífice) da extrema-direita mundial, contra Musk, o acelerado bombista da extrema-direita mundial. Entretanto, são apenas os descendentes de Mussolini que representam a Europa na solene tomada de posse de Trump e do seu admirável mundo novo.
Apetece dizer, como Hans Magnus Enzensberger: “Ach, Europa!”
Diplomata e escritor