Abençoado SNS

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O dramático acidente na Calçada da Glória pôs à prova as urgências de trauma da cidade de Lisboa. Urgências que apenas têm capacidades e competências nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Tal como pôs à prova a emergência pré hospitalar (INEM), bombeiros, PSP e alguns outros. Infelizmente, para muitas das vítimas, e até agora foram 16, nada ou muito pouco havia a fazer. 15 faleceram no local e mais um acabou por não resistir já em ambiente hospitalar. Mas tudo funcionou, algumas urgências reforçaram as suas equipas, quer convocando especialistas fora das escalas, quer aproveitando alguns que espontaneamente se ofereceram para ajudar. Mesmo eu, com 76 anos telefonei imediatamente para o chefe da urgência do meu antigo hospital de São José, para se fosse necessário ajudar na retaguarda e libertar os mais novos para actuar nos blocos operatórios. Soube que muitos outros o fizeram, mas não fui necessário. O SNS respondeu com eficácia e competência, os diferentes níveis de responsabilidade estiveram à altura. O grande trauma só pode ser tratado em equipas multidisciplinares em presença física, com uma forte componente de hierarquia e lideranças fortes.

Não resisto a contar-lhes um episódio passado no meu serviço há cerca de 20 anos. O enorme serviço de cirurgia que na altura dirigia, só tinha em presença física dois cirurgiões que à noite davam apoio aos doentes internados. A componente de urgência externa era no Hospital de São José. Nós não recebíamos no Hospital Curry Cabral (HCC) doentes vindos do exterior, a não ser doentes transplantados, ou que vinham para o realizar. Uma noite telefonaram- me para casa informando-me que uma ocorrência grave à porta do nosso hospital tinha ocorrido, e a proximidade do HCC levou os bombeiros a bater-nos à porta. O que fazer? A emergência de 3 casos era óbvia e a responsável da urgência interna ia avançar com a minha concordância. Eu vivia a cinco minutos do HCC, interrompi o jantar e dirigi-me ao hospital. Afinal, se só tínhamos dois cirurgiões escalados, eles precisariam certamente de reforços. Quando cheguei ao nosso magnífico bloco operatório já três das nove salas existentes estavam a funcionar, quatro dos cirurgiões e dois anestesistas da equipa de transplantes tinham espontaneamente aparecido, limitei-me a ir às salas a funcionar, inteirar-me das dificuldades e elogiar-lhes o profissionalismo e a disponibilidade. Os doentes salvaram-se, nós não tínhamos cumprido as regras, ninguém recebeu horas extra, apenas tivemos um comportamento adequado ao nosso juramento de Hipócrates!

Também esta característica solidária é uma das enormes vantagens de quem trabalha em equipa nos hospitais do SNS. Equipas com lideranças, fortemente baseadas numa hierarquia de competências, sem a qual não é possível hoje vencer doenças graves ou muito complexas.

Claro que não me compete opinar sobre as eventuais causas e eventuais responsabilidades do que aconteceu no despiste do elevador da Glória. E penso que não é altura para o fazer. E muito menos para fazer deste triste acontecimento, nesta altura, um aproveitamento político ou partidário.

Nesta altura temos de nos concentrar no apoio psicológico necessário aos familiares e amigos das vítimas, e obviamente continuar a tratar com dedicação e eficácia os feridos. Que este desastre, esta tragédia, nos dê pelo menos a consolação de termos reagido como um País do primeiro Mundo, e no que diz respeito à resposta do SNS, de todos os profissionais envolvidos, podermos apenas estar orgulhosos. Portugal e Lisboa estão nesta altura nas bocas do Mundo por razões que dispensávamos. Que o Mundo fique ao menos a saber como soubemos reagir à tragédia.

Cirurgião.

Escreve com a antiga ortografia

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