A voracidade da Administração Tributária: a cláusula antiabuso

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A cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT) tem na sua génese de criação uma ideia simples: quando alguém monta e executa “operações” apenas para pagar menos impostos, à margem da normalidade do tráfego jurídico, a Administração Tributária pode desconsiderar essas operações e cobrar o que entende ser devido de acordo com a leitura que faz da concreta situação tributável, independentemente da forma encontrada para levar a cabo a operação não tributada ou menos tributada. É um travão importante contra negócios ou operações que visam encapotar os verdadeiros factos tributários. A norma em si, percebe-se a sua razão de ser, mas exige na sua aplicação critérios de proporcionalidade, transparência e razoabilidade que normalmente não são tidos em conta.

Na realidade, a CGAB em vez de servir atualmente para tributar situações excecionais, a Autoridade Tributária tem a ela recorrido amiúde em situações normais de planeamento fiscal, mesmo quando se trata de opções previstas e permitidas pelo próprio sistema. Ora, numa economia moderna e em crescimento, empresas e particulares tomam decisões com base em custos, riscos e também impostos. A lei admite escolhas: constituir uma sociedade, optar por um incentivo fiscal “verde”, reorganizar um grupo, vender hoje ou amanhã. Se cada uma dessas escolhas puder ser requalificada depois com o argumento de que “o objetivo principal era pagar menos imposto”, instala-se a incerteza nos operadores económicos. Todos passam a desconfiar das interpretações da AT sobre as regras em vigor. E, quando a confiança de operadores económicos desaparece, os investimentos deixam de ser realizados.

Não se trata de dar carta branca a quem procura atalhos: uma cláusula antiabuso seria necessária, mas teria de ter uma redação que a que está em vigor não tem, em tudo indeterminada, abrindo caminho a todo o tipo de interpretação casuística e abusiva por parte da AT. O recurso a cláusulas deste tipo para abranger e justificar tributação de operações que na letra da lei fiscal não são tributadas ou são menos tributadas, deve passar pela demonstração inequívoca pela AT de que a operação foi construída com o propósito de obter uma vantagem fiscal que a lei não quis conceder, que não há substância económica relevante e que, numa alternativa razoável, o resultado fiscal seria diferente. Não basta classificar sem fundamento a operação em causa de “planeamento agressivo” para acionar a cláusula antiabuso. É preciso descrever com exatidão a factualidade subjacente encapotada numa operação que visou apenas encobrir o verdadeiro negócio à operação: o que se fez, porquê, que vantagem fiscal se obteve, qual o propósito das normas aplicáveis e porque falhou esse propósito no caso específico.

Os tribunais têm vindo a exigir exatamente isto: fundamentação rigorosa e exaustiva que justifique a aplicação da cláusula antiabuso. Quando a decisão da AT a não explica o caminho lógico que a levou à conclusão de abuso ou ignora que a lei oferece meios específicos para corrigir certas situações, a revisão da tributação cai, embora, por vezes, já tenha causado bastantes estragos, nalgum caso dificuldade de pagar salários, fornecedores, ao próprio Estado, ou mesmo a insolvência. Na realidade, quando o contribuinte apresenta razões económicas credíveis – redução de custos, alinhamento de funções e riscos, necessidade de financiamento – a cláusula não deve ser aplicada. Acresce que, na maior parte dos casos, a AT ouve o contribuinte em audiência prévia, mas trata-se de uma mera audição formal, pois, na verdade, não pondera verdadeiramente as razões do contribuinte, desconsiderando-as em nome da cobrança de uma receita indevida. Ora, o contraditório não é uma formalidade burocrática, é a oportunidade de corrigir mal-entendidos e trazer documentos que expliquem a lógica do negócio. Sem uma fase de audiência prévia rigorosa e séria por parte da AT – aliás, parte interessada na cobrança –, a probabilidade de erro dispara e os litígios arrastam-se durante anos, com custos elevados para todos, sobretudo para os contribuintes visados, alguns que não mais recuperam da ilegalidade e do abuso de que foram vítimas.

A cláusula antiabuso deve ser um bisturi, não um martelo. Bem aplicada, desarma esquemas artificiais e protege a concorrência leal. Mal aplicada, transforma a exceção em regra, mina a previsibilidade e afasta investimento. Justiça fiscal não é cobrar mais impostos, é cobrar de forma estável, proporcional e compreensível. É isso que os contribuintes e a própria economia precisam.

Advogado e sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados

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