A violência doméstica é um crime violento?
Na notícia que o DN publica hoje sobre os dados finais da PSP acerca do crime registado na cidade de Lisboa, foi uma frase sobre “violência doméstica” que mais me prendeu a atenção.
“Ao contrário do Código Penal, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) não inclui o crime de violência doméstica no quadro da criminalidade violenta e grave por uma questão administrativa. Tem uma importância estatística grande no quadro do universo da criminalidade participada, que são milhares de casos. Tem um impacto negativo e brutal sobre milhares de famílias. É uma desvalorização de um crime que, como estão recordados, se lutou bastante para que passasse a ser considerado um crime público”, referiu o professor Nelson Lourenço, presidente do Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança (GRES).
São declarações poderosas que deviam fazer-nos refletir.
1. O crime de violência doméstica é, de facto, punível com pena de prisão que vai dos seis meses até ao máximo de cinco anos (o que o enquadra na definição de criminalidade violenta que consta no Código Penal).
2. Sim, nos casos mais graves, a violência doméstica tem um impacto brutal sobre milhares de famílias. Basta ler uma reportagem recente no DN sobre a quase inexistência de casas de abrigo, que manda mulheres (e também, ainda que muito menos, homens) para situações de existência deploráveis apenas para estarem a salvo dos seus agressores.
3. As queixas deste tipo de crime à PSP e à GNR ultrapassaram as 30.000 nos últimos três anos (2024, 2023 e 2022). Bem sei que o crime de violência doméstica - “quem infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais” - tem um largo espectro, que vai dos insultos, à difusão na internet de imagens da vida privada e culmina nas ofensas graves à integridade física e até na morte.
Desconheço se o RASI (um documento que visa dar pistas ao decisor sobre como aplicar as políticas de segurança em Portugal) não inclui a violência doméstica nos “crimes violentos e graves” por “uma questão administrativa”. Mas não tenho razões para duvidar do professor Nelson Lourenço, pelo que seria importante ouvir uma explicação sobre esta questão, tanto mais que todos os crimes violentos participados e inscritos no RASI (14.350, no ano passado) não chegam a metade das queixas anuais por violência doméstica.
Os portugueses animam-se para falar de crime entre os adolescentes por causa de uma série de televisão; debatem a criminalidade atribuída a migrantes, como se de um jogo de futebol se tratasse; e distribuem, tal como alguns partidos, responsabilidades sem ter a mínima ideia do que dizem os dados das polícias.
Poucos refletem a sério, como o professor Nelson Lourenço, sobre o que nos levou a que só neste milénio (em maio de 2000) uma agressão em contexto doméstico pudesse ser denunciada por outra pessoa que não a vítima. Ou que só em 2007 o crime de violência doméstica tenha passado a existir no Código Penal, com uma tipificação própria e autónoma da “ofensa à integridade física”.
Com sorte, a Netflix faz uma série sobre maus-tratos em Portugal e o país dos brandos costumes acorda para este tema.