A verdadeira medida de uma sociedade

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"Podemos julgar a grandeza de uma nação e o seu progresso moral pela forma como esta trata os seus animais”. A frase, erradamente atribuída a Ghandi, tem-me assaltado nos últimos dias, a propósito de vários episódios na sociedade portuguesa. Primeiro, devido à forma algo néscia como muita boa gente chutou, despreocupadamente, para o lado a morte de três cães em poças de água à beira de postes de iluminação danificados pelo temporal. Esta não é, nem nunca foi apenas uma história de cãezinhos eletrocutados e a dor dos seus donos. Isso já seria história, porque a evolução da sociedade mede-se, de facto, pela forma como trata os animais, sintetizando o pensamento que abre este texto, e que continua a não ser de Gandhi.

Trata-se de uma história de possível incúria e de risco para seres humanos, que poderiam, por mero azar, ser os recipientes de uma descarga elétrica fatal. É sobre a forma como uma Câmara Municipal, a de Lisboa, nos consegue garantir que, com umas dezenas de eletricistas nos seus quadros, consegue fazer vistorias extraordinárias e rápidas a 75 mil candeeiros de iluminação pública a seguir a eventos meteorológicos fora do normal. É sobre a confiança que os cidadãos têm ou não têm nas estruturas do Estado (central ou local) a quem entregamos a responsabilidade de zelar pelo nosso bem-estar e segurança na via pública.

A verdadeira frase de Mahatma Ghandi que a IA e os milhões de terabytes de informação na web tresleram e massacraram até falar apenas de animais é esta: “Defendo que quanto mais indefesa a criatura, mais tem o direito a ser protegida pelo homem da crueldade do homem.” E isso leva-nos à falta de cuidados que o sistema de saúde, o Estado e, por inerência, a sociedade portuguesa está a prestar aos seus idosos. Hoje soubemos pelo jornal Público que o número de idosos internados, apesar de terem alta clínica, continua a aumentar. No final de outubro havia 832 pessoas (sim, pessoas, não-utentes ou pacientes ou lá como os hospitais os designam) à espera de vaga numa estrutura residencial. Em casos extremos, há idosos que aguardam mais de quatro anos. Muitos morrem antes da transferência.

O Estado - através da Segurança Social - tem sido incapaz de assegurar espaços para quem não pode pagar. Aliás, está a piorar. O número de admissões de idosos em lares através da Segurança Social caiu de 2175, em 2021, para 923, no ano passado.

No privado, há, essencialmente, três cenários. O primeiro é o de lares acessíveis esgotados e com listas de espera longas e imprevisíveis. O segundo é o de estruturas - de luxo, nem tanto ou nem por isso -, mas todas a preços proibitivos para uma vasta camada da sociedade portuguesa. O terceiro cenário é o risco de vermos os nossos familiares no telejornal das 20h00, a serem retirados de uma “casa de repouso” sem licença, em condições insalubres e gerida por gente sem escrúpulos.

Ao contrário das grávidas que dão à luz nas ambulâncias de bombeiros, nas salas de espera das urgências ou às portas do hospital, os casos dos idosos são mais insidiosos, não levantam tantas vozes de protesto, nem tantos debates de urgência no Parlamento.

A forma como tratamos os mais indefesos é, de facto, uma das principais medidas do progresso da nossa sociedade. E como precisamos de progredir nesta matéria…

Diretor adjunto do Diário de Notícias

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