A união de toda a esquerda é desejável?

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Tenho os ouvidos cheios de socialistas, “livristas” e bloquistas a queixarem-se que, em Lisboa, Alexandra Leitão não ganhou a câmara municipal a Carlos Moedas por causa da CDU, a coligação onde está o PCP. 

A história mostra que a esquerda só consegue unir-se plenamente em momentos de exceção política. Foi assim em 1936, quando a ameaça fascista forçou socialistas e comunistas franceses a selar a Frente Popular, superando anos de hostilidade mútua.  

Também um impulso de sobrevivência nacional uniu, após 1945, as esquerdas francesa e italiana em governos de reconstrução pós-guerra, que lançaram as bases da Segurança Social e a nacionalização de setores estratégicos da economia. 

Mas a frente de esquerda teve sempre um reverso que não pode agora ser ignorado: a formação de uma contra-ofensiva ampla (financeira, diplomática, cultural e mediática) destinada a quebrar o elo mais fraco dessas uniões: os socialistas. E, historicamente, estes acabam quase sempre por ceder. 

Em Itália e França, em 1947, ministros comunistas foram expulsos do governo por exigência explicita norte-americana. O padrão repetiu-se quando Mitterrand, do PS, tentou aplicar o “programa comum” com o PCF em 1981: bastaram dois anos de fuga de capitais e chantagem dos mercados para que o presidente recuasse, abraçasse a austeridade e deixasse os comunistas à deriva. 

A crise financeira e a austeridade da década de 2010 de certa maneira recriaram, na Península Ibérica, o clima de urgência dos antigos tempos italianos e franceses, o que levou ao nascimento da “geringonça” portuguesa e da coligação PSOE–Unidas Podemos.  

Mas a clássica contra-ofensiva foi montada. Em Portugal tivemos Passos Coelho a acusar o PS, por fazer um acordo com PCP e Bloco, de ter ultrapassado uma “linha vermelha”, conceito que, contraditoriamente, diz agora não ser democrático quando se refere a negociações PSD/Chega. Tivemos os mercados, a Comissão Europeia, o BCE e as televisões a propagandear desastres económicos a cada anúncio de medida de apoio social ou de recuperação de rendimentos. O próprio Chega e a IL, dada a debilidade nessa época do PSD e do CDS, nasceram assumidamente para “combater o socialismo” e “correr com os comunistas”. 

A pressão resultou. Em 2022 o chumbo de um orçamento que cedia demasiado ao poder económico levou ao fim do acordo à esquerda, deu ao PS uma maioria absoluta, criou um desastroso governo de António Costa (que até parece ter ganho como prémio a presidência do Conselho Europeu) e suscitou o posterior ascenso eleitoral de toda a direita. 

Em Espanha, a coligação inicial PSOE–Unidas Podemos (agora Sumar) sobreviveu, conturbada, mas a ameaça clássica está aí: os casamentos entre socialistas e comunistas repetem, desde a Frente Popular francesa de 1936, um enredo de entusiasmo inicial, ganhos sociais concretos e desoladoras ruturas brutais. 

Os comunistas nunca saíram fortalecidos nesses episódios e perderam quase sempre eleitorado para os socialistas, que saíram favorecidos por imporem, precisamente, a ideia de “voto útil à esquerda” que Alexandra Leitão também reivindicou para a eleição lisboeta. 

Sim, a união de toda a esquerda pode voltar a ser necessária, mas tem de ser exceção, não pode ser banalizada como seria nesta eleição autárquica porque, mais à frente, se for a única alternativa para derrotar a extrema-direita, estaria tão desgastada que, simplesmente, não funcionaria. 

 Jornalista

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