A Ucrânia é um tema doméstico

Publicado a
Atualizado a

“Os ucranianos não ficam sem coragem,
mas ficam sem munições.”

Jens Stoltenberg, 
secretário-geral da NATO

“Se Putin vencer na Ucrânia, a vida
dos franceses muda. A credibilidade
da Europa fica reduzida a zero.”

Emmanuel Macron, 
presidente da França

É uma ideia repetida, mas, infelizmente, não se desatualiza pela falta de originalidade: a hora da verdade está mesmo a chegar para a Ucrânia. E, por extensão, para todos nós, europeus.

Exagero? Antes fosse.

Desengane-se quem se mantém na ilusão de que a invasão russa da Ucrânia será “um problema lá deles no Leste da Europa”.

Nada mais errado: o destino da Ucrânia será o nosso destino. A Europa, enquanto projeto de paz, valores e prosperidade, está amarrada a este destino ucraniano.

O que acontecer à Ucrânia ditará o nosso destino democrático. Ajudar a Ucrânia a resistir à invasão russa não é “um tema de política internacional”: é um assunto de política interna, um tema doméstico para todos os Estados-membros da UE.

Não podemos continuar a assobiar para o lado: se a Ucrânia não for mais ajudada, todos seremos cúmplices das mortes no campo de batalha e nas cidades e vilas ucranianas, por falta de antiaéreas capazes de travar os mísseis e drones lançados pelos russos. E assistiremos, impávidos, à ocupação criminosa pela guerra de ainda mais território da Ucrânia pelo invasor russo, a coberto de uma narrativa revisionista assente numa leitura tosca da História da Rússia imperial.

“Não podemos permitir que Putin vença. Vivemos um momento crítico e muito perigoso para a Europa. Seria um erro crasso que deixássemos que a Rússia vencesse na Ucrânia”, insiste Jens Stoltenberg.

Macron foi claro: “A segurança da Europa e dos franceses está em jogo na Ucrânia. Se a Rússia ganhar, as vidas dos franceses mudam e a credibilidade da Europa fica reduzida a zero. Quem acredita que Vladimir Putin iria parar por ali?”

Depois de várias reuniões em Washington, Josep Borrell lançou um aviso sério e grave: “A guerra vai decidir-se na primavera ou no verão. Não há tempo a perder. A Ucrânia tem de ser mais ajudada. Temos que fazer todos um esforço maior.”

Quando o Alto-Representante da UE para a Política Externa fala assim, temos duas reações possíveis: desvalorizamos (o que implicaria a retirada total de credibilidade de quem lidera instituições europeias), ou concluímos que, depois de uma errada hesitação inicial, a Europa acordou finalmente para o perigo que corre e para os sérios desafios que enfrenta.

Parece-me mais avisado ir pelo segundo caminho.

Sigamos Macron, enquanto ainda é tempo

Voltemos a Macron. O presidente francês terá percebido o erro que cometeu há dois anos, quando quis ser o pivô europeu numa tentativa de apaziguamento com o agressor Putin. Compreender o erro e corrigir com a estratégia correta é um sinal de inteligência política.

O ocupante do Eliseu viu no impasse ucraniano a sua grande oportunidade para sublimar a urgência da “autonomia estratégica europeia” - um dos grandes temas da sua presidência já com sete anos.

Com os EUA atolados em dois gigantescos pontos de interrogação (vai Biden desbloquear o impasse no Congresso de maioria republicana? Vai Trump ganhar em novembro e dar a machadada final no que resta da liderança americana no apoio a Kiev?), com o Reino Unido a digerir o trauma autoimposto do Brexit e sem saber como lidar com a aliança permanente com Washington em caso de regresso trumpista, com a Alemanha presa nos receios da gestão da relação com a Rússia (Scholz e o Bundestag continuam a recusar-se a enviar os mísseis de longo alcance Taurus - que, de acordo com a escuta denunciada pelos russos de conversa de líderes militares alemães, seriam usados para destruir a Ponte de Kerch, que liga território continental russo à Crimeia -, Macron percebeu o papel que a França pode desempenhar neste momento histórico absolutamente decisivo para o futuro da Europa.

Tempo de clarificar posições e saber quem é quem

Por isso, o presidente francês lançou - e bem - a discussão necessária sobre não excluirmos o cenário que todos tememos: tropas ocidentais a combater diretamente com os russos no palco ucraniano.
Ao fazê-lo, Macron expôs as fragilidades da posição alemã: Scholz prometeu mudança de paradigma no rearmamento alemão pós invasão russa da Ucrânia, mas, na verdade, continua receoso da reação de Moscovo.

E sublinhou, também, o posicionamento mais assertivo e esclarecido dos países do flanco Leste - Polónia, agora com os regressados Tusk e Sikorski a proferirem das declarações mais acertadas nos avisos sobre o perigo que Putin nos lança; e bálticos - com Kaja Kallas, primeira-ministra da Estónia a ser a primeira a acompanhar Macron na leitura de que um cenário de tropas ocidentais no terreno ucraniano não pode ser excluído-, e nórdicos: Suécia e Finlândia entraram na NATO, mudando em semanas as suas posições neutrais, que tinham mais de dois séculos no caso sueco, várias décadas no caso finlandês; Dinamarca a dar toda a sua artilharia à Ucrânia e a incluir as mulheres no possível recrutamento para o Serviço Militar Obrigatório.

E Putin dura e dura e dura…

É a vantagem perversa das autocracias, neste tempo assustador de ataque deliberado às democracias: no mundo demoliberal, as lideranças têm de prestar contas aos eleitores e precisam de se preocupar com as reeleições, em ciclos políticos que seriam de quatro anos, mas se mostram, pelo desgaste, cada vez mais curtos.

Enquanto isso, Putin passeou-se em mais uma reeleição robusta até 2030 e, tudo indica, poderá ficar no Kremlin até 2036. A confirmar-se esse cenário, entre primeiro-ministro e presidente permanecerá no Kremlin por… 37 anos.

Já no nosso espaço democrático, as certezas são quase nenhumas e as dúvidas são crescentes. A era da incerteza passou a ser um fator político inescapável.

Os avisos feitos por Macron, que atrás destaquei, ganham especial urgência se nos lembrarmos que o presidente francês vai já a caminho da metade do seu segundo mandato presidencial.

É muito importante sabermos quem ganha em novembro na América: Biden, globalista, multilateralista e pró-Ucrânia; ou Trump, ultranacionalista, identitário, com traços autoritários e proximidade com Putin?

Mas é de importância quase tão gigantesca sabermos quem vai suceder a Macron no Eliseu, por volta de 2027. Neste momento, a candidata mais bem posicionada é Marine Le Pen - que construiu parte da sua ascensão política com um discurso nacionalista, antiglobalista e uma manifesta proximidade com o regime de Putin.

Sim, temos razões para ficarmos preocupados.

Usar o processo eleitoral para reforçar uma autocracia

Ao que assistimos nos últimos dias na Rússia foi mais um exemplo despudorado de como uma autocracia pode usar a capa de um suposto processo eleitoral para legitimar internamente o seu poder abusivo.

Num sistema como o russo - autocrata e focado na figura do líder-ditador - não interessa quem vota, nem como vota: o que verdadeiramente interessa é quem conta os votos.

Putin aproveitou a reeleição para eliminar adversários internos, afastar burocraticamente outros, mostrar ao mundo que já dispõe de um aparelho administrativo e repressor nos territórios ocupados na Ucrânia (Kherson, Zaporíjia, Donetsk e Lugansk, além da Península da Crimeia), que afirma, errada e criminosamente, serem “território russo”.

Não são.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt