A triste vitória dos idealistas 

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Não há forma de ficar indiferente às imagens e aos testemunhos que chegam do cerco de Kiev. No metropolitano, a meia-dúzia de quilómetros de tropas russas, mães e filhas sentavam-se fazendo bancos de prateleiras, escutando lá fora os trovões que não o eram. Perante a iminência da queda da capital ucraniana, os Estados Unidos da América ofereceram-se para resgatar o presidente Zelensky e a resposta foi pronta: "A luta é aqui. Preciso de balas, não de boleia". A sua coragem, dando a cara pela resistência e pegando em armas a seu lado, é histórica - ficará nela, independentemente do que aconteça.

O combate pela democracia europeia - porque é disso que verdadeiramente se trata - não era travado no velho continente há oitenta anos. Volodymyr Zelensky não fugiu dele. Putin, que o Cazaquistão recusou ajudar e de quem a China continua a distanciar-se, corre, por sua vez, risco de não ter para onde fugir. Ganhe ou perca no terreno, as consequências das suas ações no posicionamento da Federação Russa na arena internacional são irreversíveis. A tolerância do Ocidente aos seus comportamentos não regressará à mesma passividade. É de uma guerra que estamos a falar. França, Itália e Alemanha mudaram de posição em relação ao acesso da Rússia ao swift, dando ouvidos aos apelos de Zelensky. Biden e Macron já não escondem o envio massivo de armamento e combustível que entregam ao exército ucraniano, nem tão-pouco disfarçam a satisfação pela sua resistência. Zelensky, o primeiro herói da democracia neste século, é a cara dessa resistência; junto do seu povo, dos seus soldados, e ao mesmo tempo um comunicador eficiente para os seus aliados e para a opinião pública. Depois de sobreviver à terceira noite da invasão, Zelensky mostrou coragem, graça e oportunidade. O sol raiou e um tweet surgiu: era o presidente ucraniano a pedir adesão à União Europeia.

Esta combinação entre política pura e bravura dura é um tanto estranha para nós, ocidentais, atlânticos, pacíficos e dificilmente ameaçados. Mas não deixa de ser extraordinária por isso.

De um modo ou de outro, o mundo mudará depois da guerra na Ucrânia. Não há forma de não ser assim. A Turquia, segundo maior exército da NATO e dona do Bósforo, será determinante para o desenlace do conflito. A China, o maior exportador do planeta e o único mercado que sobra a Putin para financiar dívida pública, não aprecia instabilidade que prejudique as suas relações comerciais nem deseja ser confundida com belicismos. Pequim "tomou nota da atenção da comunidade internacional ao que se passa na Ucrânia", não alimenta "regressos à Guerra Fria" e mantém o seu apoio à carta das Nações. Mais claro não poderia ser.

E o Ocidente? Tem de aprender. Mas tem mesmo. A Gazprom na UEFA, a promiscuidade da city de Londres com a oligarquia russa, as ligações do SPD alemão a essa oligarquia, o namoro falhado de Macron com Putin, a indiferença de Merkel à anexação da Crimeia e ao envenenamento de Navalny. Foi demais. A corda que Putin estica é de nó europeu. Eu lembro-me de o parlamento português reagir ao atentado químico que vitimou Sergei Skripal com pedidos para "reforçar a relação com a Rússia". Foi há quatro anos.

Se há coisa que os atos de Putin na última semana demonstram é que os vários "ingénuos" e "idealistas" que chamaram várias vezes à atenção para a sua natureza estavam, afinal, certos. O "pragmatismo" dos vários establishments europeus é que era, como se vê, ingénuo. E a crise da Ucrânia também é fruto da sua irresponsabilidade.

Para eles, os que avisaram, não deixa de provocar um certo amargo de boca que os acontecimentos lhes deem razão vitimando aquilo que mais ansiavam por proteger. A democracia.

Colunista

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