A tragédia democrata

Publicado a
Atualizado a

O que está a acontecer com os democratas é trágico.

Joe Biden vive um processo que até podia ter traços de comédia: mas tem tudo para terminar em tragédia.

Sim, é humano, demasiado humano, não querer abdicar do poder, sobretudo a um nível singular como este, de presidente dos Estados Unidos da América. Sucede que a situação inesperada e absolutamente imprevisível em que Joe Biden se colocou só aconteceu porque se afigura como praticamente inevitável que ele perca, dentro de 107 dias, o duelo presidencial com Donald Trump.

Ou seja: a reação - compreensível, mas criticável - de Joe Biden de tentar preservar o seu poder é apenas ilusória. No atual estado de coisas, essa perda será apenas uma questão de tempo. E decorrerá do voto legítimo e soberano dos eleitores norte-americanos.

É, sem dúvida, um quadro profundamente irónico.

Biden foi, em 2020, a solução providencial para derrotar Trump nas urnas. Só ele, nos democratas, o teria conseguido. E fê-lo com competência, segurando todos os Estados habitualmente democratas, vencendo em quase todos os Estados eleitoralmente competitivos (só falhou a Carolina do Norte) e até em dois Estados habitualmente republicanos (Arizona e Geórgia).

Só que o panorama é precisamente o oposto ao de há quatro anos. Biden está atrás em todos os Estados decisivos - sendo que nalguns deles a distâncias de seis a nove pontos. E pode mesmo correr o risco de perder em dois ou três Estados habitualmente democratas: Novo México, Minnesota, New Hampshire.

Se as eleições fossem hoje, o mais provável seria uma vitória de Donald Trump por grande distância no Colégio Eleitoral (o que realmente conta) e ainda uma vantagem de Trump sobre Biden no voto popular por três a cinco pontos percentuais (o que é ainda mais preocupante para os democratas, se nos lembrarmos que o nomeado presidencial democrata venceu o voto popular em sete das últimas oito corridas presidenciais norte-americanas - todas desde 1992, com exceção da reeleição de George W. Bush em 2004).

A onda contestatária não parece travável

Joe Biden garante estar “ansioso” por voltar ao terreno de campanha, depois dos dias de reclusão no Delaware, por força da covid-19. “Os desafios são grandes e a escolha é clara. Juntos, vamos ganhar. A visão sombria de Donald Trump para o futuro não representa o que somos como americanos.”

E a sua diretora de campanha, Jen O’Malley Dillon, é ainda mais assertiva: “Reconhecemos que houve uma derrapagem no apoio a Biden desde o debate, mas vamos ganhar em novembro. Vamos continuar. Absolutamente, o presidente está nesta corrida”, disse Dillon ao programa Morning Joe da MSNBC. “Joe Biden está mais empenhado do que nunca em derrotar Donald Trump.”

Podem ser, daqui a uns dias, palavras de quem se recusa a aceitar a realidade. A onda de contestação interna não parece travável.

Biden acredita que é a melhor pessoa para travar Trump em novembro e para defender nas urnas o seu próprio legado, como presidente dos EUA nos últimos quatro anos. Mas boa parte dos democratas já não pensam assim e fizeram saber a Biden, nos últimos dias, que a melhor forma de defender o seu legado presidencial é evitar que passe uma humilhação nas urnas e dê espaço, no pouco tempo que resta, a que avance uma alternativa democrata com mais hipóteses de vencer.

É verdade que, até há duas ou três semanas, tudo isto parecia impensável. Mas em política, e sobretudo a este nível, há que ter respostas rápidas, eficazes e pragmáticas aos novos desafios que se colocam. Caso contrário, o resultado será desastroso.

O silêncio ensurdecedor de Barack Obama

Joe Biden suspeita que é Barack Obama quem está por trás da “orquestração” que pretende fazer cair a sua nomeação presidencial. O presidente sentir-se-á traído e vítima de ingratidão, uma vez que nos oito anos em que foi número dois de Obama na Casa Branca foi sempre de uma enorme lealdade.

A evolução de Obama em relação ao tema é absolutamente comprometedora para Joe Biden. Não só pelo ascendente político que Barack sempre teve em relação a Joe, mas sobretudo porque o  antigo presidente dos EUA (2009-2017) foi o primeiro a defender Biden nos minutos seguintes ao debate de Atlanta, recordando que uma “má noite todos nós temos” e que até ele, Obama, teve um péssimo debate em 2012 e depois ainda foi a tempo de ganhar nas urnas contra Mitt Romney.

Ao estar, em conjunto com Nancy Pelosi, nos bastidores de uma reflexão democrata sobre o que fazer para a nomeação, Barack Obama terá mudado de ideias nas últimas semanas em relação às condições e capacidades de Biden chegar a novembro com hipóteses reais de vencer.

Até agora, Obama não desmentiu as notícias que dão conta de que estará mesmo envolvido nesse processo na sombra da elite democrata para afastar Biden da corrida.

Só nos últimos dias, o número de congressistas democratas a assumir uma mudança de candidato passou as três dezenas, sendo que pelo menos quatro são senadores.

JD Vance disse ao que vinha

O que o vice-presidente do ticket republicano escolhido por Donald Trump defende para a Ucrânia é assustador.

JD Vance, 39 anos, senador pelo Ohio desde janeiro de 2023, representa a visão isolacionista, ultranacionalista, nativista, antiglobalista e anticomércio internacional - ainda mais que Donald Trump. Promete escalar a hostilidade à China e fazer disso a prioridade da nova política externa americana, com foco principal no Indo-Pacífico e desinvestimento quase total no palco europeu.

Isto é trágico para a Ucrânia, para as perspetivas de preservação da sua soberania e integridade territorial e, por consequência, para o que resta da arquitetura de segurança europeia e transatlântica, abrindo caminho para a passada imperial de Putin sobre território ucraniano e, quem sabe, nos próximos anos, em pontos críticos, o espaço pós-soviético como a Moldávia ou a Geórgia.

Vance teve, nos últimos meses, gestos que revelam quase nenhuma empatia face à causa ucraniana. Diz que nem sabe muito bem onde fica no mapa, diz que lhe é indiferente o que acontecerá à Ucrânia (“preocupo-me com o que se passa nos EUA”), diz que não percebe para que é que a Administração Biden já deu 200 mil milhões de dólares para ajudar a Ucrânia a travar a Rússia - e essa incapacidade de perceber isso mostra a sua visão fechada, limitada e preconceituosa em relação ao exterior e aos aliados tradicionais dos Estados Unidos.

A dupla Trump/Vance prepara-se para deixar a Ucrânia cair, forçando Zelensky a assinar uma paz miserável que implique cedência dos territórios ocupados pela Rússia - uma inaceitável premiação do direito de conquista e a desestruturação do direito de fronteira.

Como reagirá a Europa a isto? Manter-se-á coesa ou haverá alguns países europeus a preferir “dar uma oportunidade à paz do novo presidente Trump”, como Órban tanto se tem esforçado em promover junto do nosso espaço de valores. E o Reino Unido, agora de Starmer: escolhe o parceiro de sempre, os EUA, ou regressa a uma relação privilegiada com a UE, da qual se separou estupidamente nos últimos anos?

Entrámos em território desconhecido.

Os próximos dias serão decisivos e prometem ser muito interessantes - mas na versão da velha maldição chinesa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt