Ferdia Lennon escreveu um notável romance passado no século V a.C., numa Sicília então de cultura grega, que envolve prisioneiros de guerra e amantes do teatro de Eurípedes. Na entrevista que esta quinta-feira publicamos no DN, o escritor irlandês, que é formado em História, diz a dado momento, por causa do contexto bélico em que decorre a ficção, que “o que torna a invasão de Siracusa por Atenas tão marcante - para além de ter sido uma guerra travada por gregos contra gregos - é que se tratou de um conflito entre as duas democracias mais consolidadas do mundo antigo, que, apesar dos seus valores e cultura partilhados, estavam determinadas a aniquilar-se mutuamente”.A frase recordou-me de imediato a Teoria dos Arcos Dourados, de Thomas Friedman. O jornalista americano, um repórter de guerra que ganhou três prémios Pulitzer e hoje é editorialista do New York Times, publicou em 1999 um livro com o título O Lexus e a Oliveira. Nele, enquanto louvava os méritos da globalização e as oportunidades de democratização do mundo trazidas pelo fim da Guerra Fria, explicava que à medida que o capitalismo (visto como a outra face da democracia) se expandia, as guerras praticamente tornavam-se impossíveis. E nessa linha de raciocínio, se havia restaurantes McDonald’s num país, argumentava, é porque este já tinha uma razoável classe média e as classes médias não gostam de guerras, logo os políticos por elas eleitos não fazem guerras. O livro de Friedman é de 1999, e a teoria tinha já sido proposta num artigo de jornal três anos antes. Para se perceber o otimismo de um homem habituado a escrever sobre guerras, nomeadamente a Guerra Civil no Líbano, convém relembrar que se tratava da época do imediato pós-Guerra Fria, quando os Estados Unidos eram uma superpotência sem rival, pois a Rússia era demasiado fraca depois do colapso da União Soviética e a China ainda não suficientemente forte, recuperando ainda do impacto de Tiananmen. Portanto, um mundo em teoria sob a Pax Americana, em que capitalismo e democracia surgiam triunfantes.Não faltaram logo críticas à Teoria dos Arcos Dourados, por exemplo, que Friedman tinha esquecido a invasão americana do Panamá, em 1989. Mas o contra-argumento foi que se tratou de uma operação militar contra um ditador narcotraficante, portanto não seria uma verdadeira guerra. Logo a seguir à publicação, os bombardeamentos da NATO sobre a Sérvia voltaram a desafiar a teoria, afinal havia restaurante McDonalds em Belgrado. Depois disso, foram várias as guerras entre países com McDonalds, como Israel vs Líbano em 2006 ou Rússia vs Ucrânia, conflito iniciado em 2022 (deixou, entretanto, de haver oficialmente McDonald’s em Moscovo). Também a Índia (onde não há hambúrguer de vaca, mas sim o Marajá Mac, de frango) e o Paquistão chegaram a combater já este ano, confirmando que a Teoria dos Arcos Dourados está obsoleta. Não basta muito capitalismo e uma dose de democracia para garantir a paz.Na Primeira Guerra Mundial, numa Europa ainda essencialmente monárquica, em que primos eram reis em diferentes países, o conflito envolveu parceiros económicos importantes como a Grã-Bretanha e a Alemanha. O nacionalismo extremado apoderou-se das tais classes médias que na época já elegiam, em vários dos beligerantes, incluindo os dois citados, os seus representantes (nas eleições alemãs de 1912, os sociais-democratas foram os mais votados e o partido com mais assentos no parlamento). Claro que se pode argumentar que não eram democracias plenas, pois as mulheres só ganharam direito de voto depois do fim da guerra. Também a democracia ateniense, tal como a de Siracusa, relegava as mulheres para um estatuto secundário, e além disso praticava a escravatura. Mas à luz da História, foram dois casos surpreendentes de liberdade política, com muito em comum, e que acabaram por ir para a guerra. Como se pode perceber pela leitura de Heróis sem Glória, que não é um livro de História mas foi escrito por quem sabe muito de História Clássica, duas Cidades-Estado podiam fazer guerra uma à outra mesmo quando adoravam os mesmos dramaturgos. Não sei se alguém alguma vez tentou elaborar uma Teoria das Peças de Eurípides, mas o passado ensina-nos muito.Diretor adjunto do Diário de Notícias