A solidariedade da Advocacia e os deveres do Estado nos Fogos 

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Perante a devastadora tragédia dos incêndios que uma vez mais assola o país, a Ordem dos Advogados (OA) deu um passo em frente, demonstrando uma responsabilidade cívica que transcende em muito as suas obrigações estatutárias. A criação de uma Bolsa de Advogados Voluntários para prestar aconselhamento e apoio jurídico gratuito às vítimas é um gesto de profunda solidariedade e um serviço inestimável à comunidade. Contudo, esta nobre iniciativa, que merece o mais rasgado elogio, tem o efeito paradoxal de projetar uma luz crua sobre a sombra da omissão crónica do Estado. É um ato que ao mesmo tempo que ampara as vítimas deste flagelo, expõe a fragilidade de quem os pratica e a ausência de quem os devia praticar. Esta ação exemplar da Advocacia e da sua Ordem surge de uma classe profissional que tem sido sistematicamente negligenciada – para não dizer, dolosamente ignorada - pelo Estado, sobretudo, no que toca à proteção social.

Os Advogados em Portugal exercem uma profissão liberal desprovida das mais elementares garantias que são tidas como adquiridas por todos os outros cidadãos. A Advocacia está vinculada a um regime de previdência obrigatório, a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS), que, sendo um "resquício da pré-democracia" datado de 1947, falha redondamente na sua vertente assistencial. Não existe um verdadeiro direito a proteção na doença como tem a restante população, a proteção na parentalidade é deficitária e não há qualquer amparo em situações de “desemprego” (fecho de escritório ou perda de clientes) ou outro motivo de quebra abrupta de rendimentos.

A prova mais flagrante e recente desta exclusão como política de Estado, ocorreu durante a pandemia de covid-19. Enquanto o Governo criava, e bem, mecanismos de apoio extraordinário para trabalhadores independentes com quebras de faturação, os advogados foram deliberadamente deixados de fora. Com tribunais e escritórios encerrados e os rendimentos a cair "abrupta e radicalmente" na generalidade dos casos, a Advocacia viu-se a braços com as mesmas dificuldades de todos os demais, mas no seu caso particular, sem qualquer rede de segurança ou de apoios. A justificação formal foi a sua inscrição obrigatória na CPAS, um pretexto que serviu para o Estado se eximir das suas responsabilidades, abandonando milhares de profissionais e as suas famílias numa crise sem precedentes. O Estado, que agora beneficia da generosidade dos Advogados para acudir às vítimas dos incêndios, foi o mesmo que lhes virou as costas quando eles próprios foram vítimas da mesma calamidade económica que afetou toda a polução e tecido empresarial no nosso país em 2020.

É neste contexto de desproteção crónica milhares de profissionais que a iniciativa solidária deve ser contextualizada. O apoio voluntário é essencial como um primeiro aconselhamento, um encaminhamento crucial para cidadãos e empresas desorientados perante a burocracia de seguros, indemnizações e apoios públicos. No entanto, a solidariedade da Advocacia e da Ordem têm os seus limites, pois não compete à Ordem dos Advogados, nem aos seus membros, a título gracioso e de forma perene, substituir-se ao Estado na sua obrigação constitucional de garantir o acesso efetivo à justiça em situações de calamidade pública. O acompanhamento jurídico subsequente, que envolve litígios complexos e demorados, exige uma solução de médio e longo prazo que deve ser suportada pelo Estado.

A solução não precisa de ser inventada; ela já existe. O Estado tem o dever de criar um regime excecional de apoio jurídico para as situações de calamidade pública, enquadrado no Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT). Este sistema, financiado pelo Ministério da Justiça e operacionalizado numa parceria entre a Segurança Social e a Ordem dos Advogados, é a ferramenta adequada para garantir que nenhuma vítima fica desamparada por incapacidade económica. A declaração de estado de calamidade deveria acionar automaticamente este mecanismo, com critérios de elegibilidade adaptados, reconhecendo o serviço da Advocacia como uma função pública essencial. A bolsa de voluntários criada pela Ordem dos Advogados é um farol de cidadania e de solidariedade para com as vítimas do flagelo, mas ilumina um vazio que cabe ao poder político preencher com urgência e sentido de estado. Exige-se, pois, uma justiça efetiva para as vítimas das calamidades, através de um mecanismo de apoio jurídico financiado pelo erário público. A solidariedade é um pilar fundamental da sociedade, mas não pode, nem deve, ser a muleta permanente de um Estado ausente. 

Advogado. Sócio fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados 

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