A religião é o ecstasy de alguns constitucionalistas?

1 A famosa frase de Karl Marx - "A religião é o ópio do Povo" (Die religion ist das opium des volkes) - escrita em 1843, numa introdução a uma obra de Hegel, vem mesmo a calhar para inspirar o título e o assunto deste artigo.

São hoje de aceitação pacífica os diversos erros que este provérbio marxista encerra, os quais a História da Humanidade se encarregaria de confirmar:
- é uma frase errada na sua ignorância ontológica de pensar que a religião teria passado de "fator" de luta a "elemento" criador da miséria económica das sociedades;
- é um frase errada na sua inadequação epistemológica de considerar que a religião se resume a um esquema de poder, ou que as relações humanas somente se deixam determinar por comportamentos económicos, sendo a religião uma ilusão que os "fortes" e as "classes dominantes" criariam para dominar os "fracos" e as "classes dominadas";
​​​​​​- é um frase errada como profecia histórica porque, afinal, a religião não seria substituída por qualquer racionalidade comunista, pois até o próprio Estado Socialista - estádio prévio ao comunismo final - antes se desmoronaria no fim do século XX.

2 Vem isto a propósito de, no tema do emprego de dinheiros públicos na Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, alguns afirmarem ser isso inconstitucional, porque violador da laicidade do Estado.

Pelos vistos, depois de quase dois séculos, esta frase de Marx ainda continua válida nalguns intelectuais, mesmo que o marxismo deles tenha saído, ora por convicção, ora por oportunismo, agora não interessa.

Só que esta frase nem foi mesmo válida na parte "aproveitável" que sobrou após a interpretação corretiva que Vladimir Lenine lhe fez, para com muito calculismo refrear alguns ânimos mais exaltados, confinando a sua crítica à religião apenas como "assunto público", aceitando a prática privada da religião.

3 O problema de fundo é que a religião como sentimento humano jamais se poderá limitar a um foro privado, assumindo uma dimensão pública e coletiva.

Podendo isso variar conforme a confissão religiosa em causa, o certo é que a religião, por definição, encerra um modo de vida, não podendo desconsiderar a sociabilidade humana. Assim como onde está a sociedade, está o direito, onde está a sociedade, está a religião como explicação - transcendente e imanente - da condição humana.

A dificuldade radica, pois, no respeito pela liberdade religiosa, já que não podem os não-crentes impor a sua conceção "a-religiosa" ou "anti-religiosa" da vida coletiva, num sinal de intolerância em relação aos sentimentos religiosos, que eram, de resto, uma evidência logo no homo sapiens, que, como mostra a Antropologia, ao mesmo tempo se apresentou como homo religious.

4 Assim sendo, como explicar não ser o financiamento público a uma atividade religiosa inconstitucional à face do princípio da laicidade?

A resposta está na deficiente perceção que se tem da laicidade, que é somente um dos vários princípios que enformam o Direito da Religião e da liberdade religiosa.

São plúrimas as orientações que se extraem, sendo a laicidade como separação uma delas. Mas a laicidade significa do mesmo modo cooperação do Estado com o fenómeno religioso, como o Estado coopera com outras manifestações da sociabilidade humana, como o financiamento à cultura, ao desporto ou ao associativismo.

Ponto é que não o faça de um modo discriminatório ou desproporcionado, ou não dê um mínimo vital de intervenção no espaço público a todas as confissões religiosas, tomando em linha de conta a maior dificuldade das minoritárias.

É, aliás, nesse sentido que aponta a Lei da Liberdade Religiosa, cujo artº 5.º - com a epígrafe "Princípio da cooperação" - é exemplar, nele se podendo ler uma feição financeira: "O Estado cooperará com as igrejas e comunidades religiosas radicadas em Portugal, tendo em consideração a sua representatividade, com vista designadamente à promoção dos direitos humanos, do desenvolvimento integral de cada pessoa e dos valores da paz, da liberdade, da solidariedade e da tolerância".

Bem avisados foram, a este respeito, alguns textos constitucionais lusófonos posteriores ao português, que salientam a faceta da "laicidade cooperativa", uma moeda com duas faces, de legitimação/proteção e de contenção da intervenção do Estado.

É de aplaudir como estes Estados Lusófonos puderam esconjurar, em tão pouco tempo, os seus fantasmas marxistas-leninistas em matéria de religião, como se pode ler, por exemplo, no artº 12.º, nº 2, da Constituição de Timor-Leste (parecido com as mais recentes Constituições de Moçambique e Angola): "O Estado promove a cooperação com as diferentes confissões religiosas, que contribuem para o bem-estar do povo de Timor-Leste".

Nunca se perceberia a razão por que os poderes públicos, num Portugal com 80% de católicos, segundo o censo de 2021, estariam constitucionalmente impedidos de o fazer.

Será a religião o ecstasy de alguns constitucionalistas, cujos fortes efeitos alucinogénios fazem com que vejam proibições constitucionais que não existem?

Constitucionalista e Professor Catedrático de Direito

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