A Reforma do Estado em suspenso entre promessas, dilemas e labirintos
O XXV Governo Constitucional iniciou funções com a promessa clara de “declarar guerra à burocracia”. Luís Montenegro criou um Ministério da Reforma do Estado sob a sua tutela direta, apostando nas secretarias de estado da Simplificação Administrativa e da Digitalização.
O gesto foi simbólico, mas persiste uma contradição. Os pilares relativos às Pessoas e Estruturas mantêm-se, como habitualmente, na tutela das Finanças, sob a alçada da Secretaria de Estado da Administração Pública. Esta separação entre quem idealiza a reforma e quem a viabiliza, perpetua a lógica compartimentada que se quereria superar. Em vez de unir para transformar, dividiu-se para modernizar com eficácia limitada.
Esta tensão entre ambição reformista e bloqueio orçamental não é nova. No início dos anos 90, no governo de Cavaco Silva, quando estava em curso uma agenda de modernização centrada na qualidade e no serviço ao cidadão, integrando Pessoas, Estruturas, Processos e Tecnologias, acabou por esbarrar na ortodoxia orçamental.
Mais tarde, no governo de António Guterres, Alberto Martins ensaiou uma reforma institucional mais ambiciosa. Mas faltou apoio político duradouro e meios adequados, e a iniciativa esvaziou-se rapidamente. A lógica financeira sobrepôs-se quase sempre à inovação e as reformas ficaram aquém das promessas.
Durante o período da Troika, o governo de Passos Coelho reforçou esta abordagem orçamentista. As tecnologias de informação foram vistas como despesa a cortar e não como investimento estratégico. Esta visão comprometeu a modernização do Estado, travando projetos essenciais à eficiência e à proximidade com os cidadãos. O atraso foi tanto tecnológico como político.
Hoje o Estado continua preso entre a modernização incremental e a reforma estrutural. A primeira, tecnocrática e prudente, gera melhorias pontuais nos serviços prestados. A segunda exige coragem política e uma reorganização profunda dos serviços, centrada no ciclo de vida dos cidadãos, com respostas integradas, automatizadas, desintermediadas e empáticas.
A verdadeira reforma não se faz com decretos nem slogans. Exige revisão de carreiras, qualificação de lideranças e modelos de gestão modernos. A digitalização sem critério pode agravar desigualdades e desumanizar serviços. A tecnologia deve ser aliada da justiça administrativa e não um instrumento de exclusão.
A experiência internacional é elucidativa. Nos EUA, o Estado foi reduzido por Reagan, tornado mais eficiente por Clinton e Al Gore, acabando por ser capturado por Donald Trump. Elon Musk, sob o pretexto de eficiência, promoveu cortes caóticos e ataques à neutralidade da administração pública. Na Argentina, Milei continua a empunhar a motosserra contra a despesa pública.
Parece que Portugal não pretende seguir estes últimos modelos radicais, mas a sua reforma do Estado permanece em suspenso, travada por silos institucionais, interesses divergentes e falta de uma visão integrada. O novo super Ministério arrisca-se a tornar-se num laboratório isolado, com poder simbólico, mas sem autoridade e credibilidade real para mover transversalmente a engrenagem pesada do Estado.
Ainda assim, há caminhos possíveis. Retomar e aperfeiçoar a lógica SIMPLEX do governo Sócrates, reorganizar processos em torno do cidadão, garantir interoperabilidade entre sistemas, partilhar dados e automatizar decisões com regras claras e transparentes. Trata-se de devolver ao cidadão tempo, dignidade e confiança institucional. Uma estratégia exigente, mas mais justa e eficaz.
A reforma do Estado não se faz contra ninguém, mas também não se faz sem mexer em nada. O dilema está entre transformar com coerência ou gerir com hesitação. Por agora, tudo permanece em suspenso e nós continuaremos atentos aos próximos sinais.
Especialista em governação eletrónica