A queda do liberalismo
A invasão não-provocada, ilegal, imoral e criminosa da Rússia à Ucrânia, assumida em larga escala a 24 de fevereiro de 2022, depois de oito anos prévios de anexação da Crimeia e conflito no Donbass, mudou a face do sistema internacional gerado pós-II Guerra Mundial
É sempre difícil analisar ao pormenor os grandes acontecimentos enquanto os vivemos. Ainda mais quando estes são de longa e imprevisível duração e ainda mais incompreensível conclusão.
Operação Militar Especial - a invasão, a multipolaridade e o fim do mundo, ensaio com a chancela da Astraios Editora, lançado no domingo passado, tem o mérito de contribuir com profundidade para uma análise arriscada, por vezes contracorrente, séria e documentada, do que verdadeiramente está em causa.
O título, claramente provocador, tem outro mérito: o de obrigar o leitor a uma compreensão global da obra antes de decretar indignação precipitada, tão frequente nestes tempos de rótulos apressados em que vivemos.
Afonso Moura é geopolitólogo, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, na área da Segurança e Defesa, e doutorando em Filosofia Política na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Em 2017 já tinha escrito o ensaio Adeus Europa. Da Queda Czarista ao Brexit, no qual alertou para as tensões crescentes entre os Estados Unidos e a Rússia quanto ao futuro da Ucrânia e da ordem mundial. Na altura, deixava já antever que a Rússia iria optar pela batalha em vez de se submeter.
Nesta Operação Militar Especial, o autor explica os aspetos comerciais, geopolíticos, civilizacionais, religiosos e filosóficos de uma Rússia sobre a qual poucos conhecem ou, pelo menos compreendem, sobre as forças que a animam.
Neste quadro, obviamente que uma das personagens centrais na análise de Afonso Moura é Vladimir Putin. Da estratégia bélica à escatologia cristã, do direito internacional à filosofia política, não há assunto deixado de fora.
Trata-se de um contributo sustentado, informado, articulado e sempre bem escrito, capaz de nos desafiar e inquietar, e sem qualquer cedência a eventuais relativizações ou desvalorizações politicamente corretas. O momento internacional a isso não nos permite.
A morte da hegemonia liberal
Em 140 páginas legíveis de forma acessível e atraente, e depois de uma Introdução com um título que daria, todo ele, outro livro (“Uma invasão metafísica”), Afonso Moura desenhou três grandes temas, cada um com apenas dois ou três pontos de exploração. O primeiro, com o título A Invasão, desenvolve “De Lisboa a Vladivostok” e “A Pequena Rússia”, a diferença entre o tempo mediático e o tempo histórico. O segundo aborda A Multipolaridade: “De Moscovo a Pequim”, “De Pequim a Nova Deli” e “No início todo o mundo era a América”, ou seja, os grandes espaços que fazem frente à República Universal. O terceiro grande tema tem outro título provocador: O Fim do Mundo. Podemos, nele, recuar no tempo e aprender com a História, lendo: “Katechon”, “Vladimir e Catarina” e “Putin e Constantino”, no género literário ‘espelhos de príncipes’.
Na tal “invasão metafísica” da Introdução, o autor arranca em força ao desafiar-nos: “Pensar. Pensar é a coisa mais perigosa que alguém possa fazer. Porque pensar pode-nos meter ideias na cabeça, ideias essas que podem estar em total desacordo com a doxa reinante.”
Afonso Moura avisa-nos, à partida, sobre o que 24 de fevereiro de 2022 significa: “A invasão comporta uma radicalidade gigantesca. Não é somente um cruzar uma fronteira com tanques, é também uma invasão de mentes com o intuito de conquistar corações; o que a Rússia disse ao mundo naquele dia foi isto - o destino da humanidade não é o liberalismo. (…) Para lá da Rússia, também a China, a Índia e Pérsia possuem civilizações próprias, todas elas estranhas ao liberalismo. (…) Muitos foram aqueles que dissertaram sobre os torcidos planos de Putin: antigo homem do KGB que queria restaurar a União Soviética; ditador sanguinário que veio destruir o exemplar Estado ucraniano; alguns cold warriors sonharam - ainda sonham - com uma nova Guerra Fria. Hillary Clinton não se acanhou, permitindo-se uma comparação ousada entre Hitler e Putin já desde 2014. Outros disseram que se a Ucrânia tombasse, outros países mais a ocidente seriam os próximos. Pensar que a Rússia tem algum interesse em conquistar a Polónia revela uma confusão profunda, revela a equiparação da Federação Russa à União Soviética.”
A parteira da multipolaridade
Perante tão forte certeza aduzida, qual é então o objetivo que o autor configura na estratégia de Putin? “O objetivo da invasão é territorialmente muito mais limitado, metafisicamente muito mais extenso. Da filosofia política eurasista chegamos à multipolaridade geopolítica. A Rússia assumiu o papel histórico de ser a parteira da multipolaridade.
Este livro aborda, assim, a diferença entre Direito Internacional e Relações Internacionais. Insiste nas ‘nuances’ de China e Índia face à invasão. Aponta a contradição, ainda pleno processo, entre a unipolaridade americanocêntrica e a multipolaridade. Questiona e desenvolve as inspirações de Putin e antecipa um abandono americano da Ucrânia em caso de retorno de Trump.
O mundo deixou de ser só a América
A queda do liberalismo: eis outro título possível para este desafiante, certamente não-consensual, mas muito interessante, ensaio.
Da sua leitura inferimos que a ordem internacional liberal perdeu a sua hegemonia, ainda que os Estados Unidos da América se mantenham como líderes dessa ordem, que entretanto perdeu o seu caráter unipolar.
Na página 101, é lançada a pergunta: “Qual é, então, o plano dos Estados Unidos da América para a Ucrânia? A Ucrânia, se não desaparecer, tem um futuro sombrio pela frente, um futuro que, em tantos parâmetros, lembra o do Iraque. Sim, porque arremessar Kiev contra Moscovo não deixa de lembrar o arremesso de Bagdad contra Teerão. Os americanos chamam a isto offshore balancing. (…) O processo interno norte-americano, e a sua consequente relação com a Rússia, será determinante para nos dizer que mundo será o nosso; e que América será a deles.”
Vladimir e Catarina, protetores do mundo russo
O livro termina com uma comparação histórica que nos ajuda a compreender a dimensão psicológica do que Putin imagina ser o seu lugar. “Por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. Não devo ter sido o único a ouvir esta frase. No caso de Vladimir a grande mulher não está somente atrás. Cronologicamente está sem dúvida atrás, mas metafisicamente está atrás, à frente, à esquerda e à direita. Os príncipes, ao longo da História, tiveram sempre modelos. Sabemos aquilo que Alexandre, o Grande, significou para Júlio César. O lugar especial que Catarina, a Grande, ocupa no coração de Vladimir Putin só é decifrável se nos debruçarmos sobre a carreira soviética do atual príncipe russo”.
“(…) Vladimir Putin ganhou aversão aos universalismos. A narrativa soviética - tal como a narrativa liberal - falava de um mundo liso, sem ornamentações, rugas e arestas (…). A operação militar especial é uma empresa de restauração. Não de restauração soviética, mas de restauração russa. Tal como a imperatriz, Vladimir vê-se como protetor do mundo russo. Tal como a imperatriz, ele vem de terras germânicas. Influenciado pelo comunismom, que chegou à Rússia vindo da Europa romano-germânica, Vladimir, num primeiro momento, aceita a narrativa do atraso russo. A Rússia teria passado por convulsões inéditas porque não soube evoluir e adaptar-se suficientemente bem a um novo mundo.”