A pressa é inimiga do Estado

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Estamos habituados a assistir no início de qualquer legislatura, a que tudo aconteça o mais rápido possível, das decisões às obras e das reformas às inaugurações. É o tempo da euforia política, em que a velocidade se confunde com mérito e a prudência com o imobilismo. O atual governo vive mais uma vez o dilema de como acelerar o Estado sem o tornar invisível.

A disputa entre o Governo e o Tribunal de Contas é apenas o reflexo mais visível desta tensão entre a pressa e a garantia, entre a urgência política e a solidez democrática. O ministro da Reforma do Estado acusa o Tribunal de Contas de “se substituir ao poder político”, enquanto a presidente respondeu com clareza, que é precisamente da intervenção do Tribunal que depende a credibilidade financeira do Estado, pois o controlo não é o oposto da governação, é a sua condição.

O que Portugal precisa não é de menos controlo, mas de melhor controlo. De uma boa burocracia, que é aquela que protege o interesse público com regras claras, rastreabilidade e transparência. É urgente distinguir entre o controlo que garante confiança e a papelada inútil que apenas atrasa os processos sem lhes acrescentar valor. A boa burocracia deve ser acelerada e desmaterializada com processos digitais interoperáveis, enquanto a má burocracia deve ser pura e simplesmente eliminada.

Há sinais preocupantes de que o discurso da “eficiência” começa a servir de pretexto para a erosão das garantias administrativas e jurídicas. O Código do Procedimento Administrativo, que consagra princípios fundamentais como a participação dos cidadãos, a motivação dos atos e o direito à informação, tem sido alvo de críticas e tentativas de “simplificação” que soam a desmantelamento. Sob o pretexto de modernizar, ameaça-se esvaziar o coração do Estado de Direito administrativo. Reformar é necessário, no entanto, reformar à pressa, em nome da eficácia, é muito perigoso.

A modernização do Estado não se faz cortando competências de fiscalização nem derretendo garantias em nome da celeridade. Faz-se ligando sistemas e vontades, com interoperabilidade entre os organismos e os órgãos de controlo, como o Tribunal de Contas, as inspeções e o escrutínio público no Portal Mais Transparência. É essa rede inteligente que pode tornar o escrutínio mais ágil sem o tornar cego.

O controlo interno é a primeira linha de defesa da integridade pública e tem sido sistematicamente desvalorizado. As inspeções-gerais, as auditorias internas e os mecanismos de verificação perderam meios e relevância política. Quando o Estado deixa de se fiscalizar a si próprio, o controlo externo chega sempre tarde demais e torna-se no inimigo dos poderes públicos.

O controlo externo, assegurado pelo Tribunal de Contas, é o segundo escudo, independente, técnico e incómodo, como deve ser. Reduzir o seu alcance é abrir caminho à opacidade e à arbitrariedade. E ainda há um terceiro pilar, frequentemente esquecido, que é a transparência ativa.

Num contexto em que o poder político é cada vez mais permeável à influência das grandes multinacionais e dos lobbies económicos, a transparência não é uma virtude, é uma necessidade democrática. Tornar públicos os dados, os contratos e os fluxos financeiros não deve ser um ato de boa vontade, mas uma obrigação. Não basta responder quando perguntam, é preciso mostrar antes que perguntem.

A democracia vive da luz. E a luz nasce do escrutínio interno, externo e público. Fragilizar qualquer um destes pilares é fragilizar o próprio Estado.

O desafio não é acabar com a burocracia, é acelerar a boa e abolir a má. Um Estado que se fiscaliza e se explica é um Estado mais forte, mais transparente e mais digno de confiança. Porque a boa burocracia, tal como o cinto de segurança, pode incomodar, mas é ela que impede o desastre.

Especialista em governação eletrónica

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