A prenda de Natal da Justiça

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O Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, disse que a decisão sobre a averiguação preventiva ao caso Spinumviva deverá estar concluída antes do Natal. Falou mesmo numa eventual “prenda de Natal”. A referência, feita num registo informal, situou temporalmente um procedimento que, desde o início, se transformou num teste à forma como a justiça portuguesa lida com processos de elevada exposição política.

Convém recordar o essencial. Não está em causa, nesta fase, qualquer juízo de culpa sobre Luís Montenegro. O que está em cima da mesa é saber se os elementos recolhidos pelo Ministério Público (MP) justificam a abertura de um inquérito-crime formal ou se, pelo contrário, o processo deve ser arquivado. A averiguação preventiva é precisamente isso: um mecanismo preliminar destinado a avaliar se existem indícios suficientes para avançar.

É também aqui que surge uma questão jurídica relevante. Nos últimos dias, um grupo de juristas - Wladimiro Brito, Francisco Teixeira da Mota, Ricardo Sá Fernandes e Pedro Miguel Freitas - pediu ao Provedor de Justiça que solicite ao Tribunal Constitucional uma pronúncia sobre a eventual inconstitucionalidade deste tipo de procedimentos. Não o fazem contra o primeiro-ministro, sublinham, mas em sua defesa e, sobretudo, em defesa do Estado de direito.

O argumento é simples: o Código de Processo Penal determina que qualquer pessoa sobre quem recaia uma suspeita concreta deve ser constituída arguida, precisamente para que lhe sejam assegurados os direitos de defesa - acesso ao processo, acompanhamento por advogado, possibilidade de intervenção. Ora, numa averiguação preventiva, nada disso acontece. O visado não é arguido, não tem estatuto processual e pode nem sequer conhecer o resultado do procedimento.

Para estes juristas, trata-se de uma prática sem base legal. Uma coisa são ações preventivas previstas em legislação específica, como a Lei 36/94 (Medidas combate à corrupção e criminalidade económica e financeira), invocada para a instauração deste processo; outra é uma prática administrativa do MP que permite investigar suspeitas concretas fora do quadro do inquérito criminal previsto na lei. Essa prática, defendem, viola direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados e contribui para o alarme público sobre a atuação da justiça.

Não se discute apenas se deve ou não haver inquérito. Discute-se se o próprio instrumento usado para lá chegar é compatível com a Constituição e com as garantias fundamentais dos cidadãos - incluindo, ironicamente, do próprio primeiro-ministro.

Este enquadramento jurídico é relevante para compreender o alcance da decisão que se aproxima. Coloca-se ainda uma questão que merece reflexão. Perante suspeitas de natureza semelhante dirigidas a um cidadão comum, é legítimo perguntar se a resposta do sistema não teria sido, desde logo, a abertura de um inquérito-crime, com os meios de investigação que a lei prevê, incluindo a possibilidade de buscas e apreensão de documentação relevante, sempre sob controlo judicial.

A averiguação preventiva, pelo contrário, assenta necessariamente na solicitação faseada de elementos ao próprio visado, dependendo em larga medida da sua colaboração, o que levanta interrogações quanto à eficácia do procedimento e à igualdade material na aplicação dos instrumentos legais.

Acreditamos que a probabilidade maior neste caso é a do arquivamento. Do ponto de vista do direito penal, essa solução é inteiramente legítima se o MP concluir que os elementos recolhidos não atingem o limiar mínimo de indícios exigido para abrir um inquérito. O direito penal rege-se pelo princípio da intervenção mínima e não admite investigações exploratórias nem processos abertos para dissipar suspeitas públicas.

Um arquivamento pode, assim, traduzir contenção institucional e respeito pela presunção de inocência, particularmente relevante quando o visado exerce funções políticas de primeira linha. Mas essa mesma decisão exige, neste contexto, uma fundamentação especialmente clara.

Num caso que já produziu efeitos políticos e alimentou suspeições, a ausência de explicação ou um despacho excessivamente lacónico arriscaria fragilizar a perceção pública de justiça, mesmo que a decisão fosse juridicamente irrepreensível.

A abertura de um inquérito-crime, por seu lado, não constituiria qualquer antecipação de culpa. Representaria apenas o reconhecimento de que existem indícios que justificam a passagem a uma fase processual com garantias reforçadas para o visado e com instrumentos de investigação sujeitos a controlo judicial. Em certos contextos, essa opção seria a forma mais eficaz de assegurar o esclarecimento integral dos factos e de proteger a credibilidade das instituições.

Também aqui, porém, existem limites claros. Abrir um inquérito para responder à pressão mediática ou para produzir um efeito simbólico seria tão problemático quanto arquivar sem fundamentação suficiente. A justiça não pode funcionar como mecanismo de gestão de perceções nem como substituto do debate político. E, como sublinham os juristas que suscitam a questão da constitucionalidade, a solidez do processo depende não apenas do seu desfecho, mas da legalidade do percurso que conduz até ele.

É neste equilíbrio que se situa a decisão agora iminente. A cerca de dez dias do Natal e com a aproximação das férias judiciais, a conclusão da averiguação preventiva deverá, por esta altura, estar já definida nos seus termos essenciais. Independentemente das metáforas utilizadas, o essencial é que a atuação da justiça se rege pelo cumprimento da lei e pelo respeito das garantias constitucionais, e não por referências simbólicas de calendário.

Se o caso Spinumviva contribuir para uma clarificação dos limites da atuação do MP e para um debate mais exigente sobre os instrumentos admissíveis na fase prévia à investigação criminal, então dele poderá resultar um reforço da confiança institucional. É esse, em última análise, o critério pelo qual esta decisão deverá ser avaliada. Essa, sim, seria a melhor “prenda de Natal” para a Justiça.

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