A ponta de um icebergue

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Se os tempos estão difíceis para os adultos, como estão para os adolescentes? Há pouco mais de uma semana, a comunicação social noticiou o alerta da equipa do Hospital D.ª Estefânia, que tem a maior Urgência Pedopsiquiátrica do país, segundo a qual o número de casos de tentativa de suicídio duplicou em apenas 4 anos. Os episódios envolvem sobretudo adolescentes com 15 e 16 anos, embora se tenham registado casos com 11 anos de idade. Todos são reveladores de situações de profundo mal-estar, mas cerca de 33% sugerem, de facto, intenções suicidas. Sabe-se, entretanto, que aos consultórios chegam adolescentes cada vez mais novos.

Conhecemos em 2022 os resultados do estudo Health Behaviour in School-aged Children, realizado em 51 países. Os dados mostram que 1 em cada 4 adolescentes portugueses magoam-se a si próprios, num preocupante quadro de mal-estar. Entre 2018 e 2022 a perceção de infelicidade subiu de modo galopante, de 18,3% para 27,7%. Ao mesmo tempo aumentaram os sintomas físicos e psicológicos de mal-estar. Os adolescentes portugueses sentem mais medo, dormem pior e menos. Têm menos expectativas no futuro. Reportam um decréscimo da qualidade da relação familiar e do apoio da família. Aumentou a percentagem de adolescentes que nunca faz refeições em família.

Tomemos consciência de que a turbulência se instalou no ensino. Já são três anos perdidos. As consequências são irreparáveis, em especial para os socialmente mais frágeis e desprotegidos. Primeiro foi a pandemia. Agora, as greves sem fim à vista. A piorar a situação, a crónica falta de professores, que dura há anos e que se vai agravar. Quantos milhares de aulas ficaram por dar? Quantos dias perdidos? Não conhecemos os dados, nem o Ministério da Educação os divulga.

Num país que aprisionou as crianças numa escola a tempo inteiro, normalizando o absurdo, fala-se das famílias sobretudo para assinalar as consequências de toda esta turbulência nas vidas profissionais dos pais e encarregados de educação. Mas esquece-se que a vida familiar também é vivida cada vez mais em alvoroço, com consequências nas vidas das crianças e dos jovens. Os portugueses estão mais pobres. A esmagadora maioria dos trabalhadores ganha mal. A inflação, agravada nos bens alimentares, engole o já parco poder de compra das famílias. O aumento dos juros está a apertar o garrote. A ansiedade, o desespero, a depressão, instalam-se. Que consequências tem isto no ambiente que se vive na esfera privada do lar? Como modifica isto as vidas das crianças e dos jovens?

É verdadeiramente preocupante que 34,3% dos alunos refira que a sua vida na escola ficou pior ou muito pior depois da pandemia. Devemos parar para refletir quando 25,8% dos adolescentes refere sentir tristeza várias vezes por semana ou quase todos os dias, 31,8% refere sentir irritação ou mau humor e 37,4% refere sentir nervosismo. O resultado de tudo isto pode ser trágico, enquanto nos entretemos a falar da geração mais bem preparada de sempre. As escolas e as famílias assumem a responsabilidade partilhada de cuidar e apoiar o desenvolvimento das crianças e dos jovens. Mas se umas vivem em turbulência e outras caem em desespero, o que resta? Que consequências para as vidas das crianças e dos adolescentes? Serão estes dados a ponta de um icebergue?

Professor do Ensino Superior

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