A política segundo Rocky Balboa

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Tentando contornar o ruído narcisista de muitas linguagens televisivas em torno da política, eis uma pergunta rudimentar que vale a pena recolocar: de que falamos quando falamos de Donald Trump?

A pergunta começa por ser introspetiva e, por isso mesmo, incómoda. A demonização automática de Trump - para a qual existem múltiplas razões, a começar pela tentativa de legitimação da invasão do Capitólio, no dia 6 de janeiro de 2021 - pouco mais tem feito do que envolver-nos num caldeirão mediático alimentado pela histeria de algumas esquerdas e pelo vazio de pensamento de quase todas as direitas. A dicotomia “direita/esquerda” é mesmo escassa, para não dizer inoperante, para lidar com uma personagem tão assustadora (e também tão complexa) como Trump.

Cito, a propósito, Sylvester Stallone, num evento em Mar-a-Lago, poucos dias depois da reeleição de Trump: “Quando fiz Rocky, se se lembrarem, o primeiro plano do filme era uma imagem de Jesus, com a legenda Resurrection A.C. Club. Eu tinha encontrado uma igreja que fora convertida num ringue de boxe. A câmara passa da imagem de Jesus para Rocky a levar um soco. Nesse momento, ele surge como uma pessoa escolhida e foi aí que eu comecei a sua caminhada: alguma coisa ia acontecer, este homem ia protagonizar uma metamorfose e mudar as vidas dos outros - tal como o presidente Trump.”

Stallone em pose de Rocky: cinema, mitologia e política.

Mais do que uma visão teológica, em que algo ou alguém é celebrado pelos seus dotes divinos, estamos perante uma verdadeira teleologia: a identidade de uma determinada pessoa (Trump, neste caso) define-se através de uma “caminhada” que se confunde com a apoteose de um destino.

O criador e intérprete de Rocky Balboa concluiu: “Estamos, de facto, perante uma personagem verdadeiramente mítica. Adoro a mitologia e esta pessoa não existe neste planeta. Ninguém no mundo conseguiria fazer o que ele fez - sinto-me em êxtase. E vou só dizer isto, e com convicção: quando George Washington defendeu o seu país, não fazia ideia de que iria mudar o mundo, já que sem ele podem imaginar o que seria o mundo. Pois querem saber? Temos o segundo George Washington - parabéns!”

As palavras de Stallone, duplicando-se na mitologia do seu Rocky, confrontam-nos, perversamente, com uma questão fulcral: não é possível compreender (nem sequer começar por descrever) as dinâmicas da política contemporânea sem ter em conta os seus cruzamentos, interferências e contaminações com componentes de natureza mitológica.

Dir-se-á que isso aconteceu com as mais diversas figuras do século XX, tão diferentes, e também tão opostas, como Josef Staline ou François Mitterrand. Sem dúvida, mas não é essa a questão - trata-se de reconhecer o enredar da frieza concetual que associamos à política com elementos de natureza mitológica, precisamente, que todos os dias escapam à cultura de tristes “polémicas” que proliferam nos nossos ecrãs caseiros.

Nada a ver, entenda-se, com o facto de haver ou não haver comentários sobre cinema no pequeno ecrã.

Acontece que (quase) ninguém quer pensar o sistema televisivo e o seu infinito poder cultural na quotidiana definição e gestão dos valores individuais e coletivos, narrativos e simbólicos, que definem a nossa sociedade. Esquecemos até que os militares de Abril começaram por ocupar os estúdios da RTP de modo a garantir a prevalência do poder democrático.

Todos sabemos que Trump começou por ser uma personalidade política (ou a aproximar-se da política) através do The Apprentice, um programa de Reality TV - e sabemos também que personalidades tão radicalmente diferenciadas como Volodymyr Zelensky, Marcelo Rebelo de Sousa ou André Ventura se afirmaram no imaginário social através da televisão.

O certo é que nos damos ao luxo de não pensar o espaço televisivo como o centro cultural do nosso mundo. Daí esta cruel ironia: ainda que em nome de Donald Trump, Sylvester Stallone confronta-nos com o poder mitológico que quase todas as “análises” políticas recalcam ou, pior um pouco, desconhecem.

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