A pequena raiva dos bloqueados 

Publicado a

Temos provavelmente o Estado e os contribuintes a cobrir custos que deveriam caber aos empregadores (incluindo o próprio Estado), sob a forma de melhores salários. Sendo os preços da habitação e da alimentação o que são hoje em dia em Portugal, bem como da eletricidade, combustível e de tantos outros bens e serviços fundamentais, a única forma sustentável de dar acesso às pessoas a bens fundamentais e liberdade de decisão é aumentar os salários. É certo que o salário mínimo quase duplicou numa década, mas aquilo que pode ser comprado com ele também... Salários ditos “médios” em Portugal levam os mais qualificados a trabalhar fora, onde facilmente podem ganhar o dobro ou o triplo, sem custos acrescidos em bens fundamentais. E tornou-se, portanto, decisivo para o funcionamento da economia e do turismo recebermos muitos imigrantes, que fogem da pobreza mais extrema para uma ligeiramente melhor, redistribuídos pela agricultura e hotelaria e restauração e pelos serviços da nova economia digital, a uberização do quotidiano dos remediados servidos pelos quase indigentes. 

Como aumentar os salários? Enquanto boa parte da economia for composta por negócios que funcionam e se mantêm a pagar 900 euros por mês, como o turismo, a agricultura e parte da indústria, será difícil. Enquanto a desigualdade for tão evidente e permitida, com o trabalho taxado quase ao dobro dos dividendos, será francamente demorado o salto qualitativo de que se fala há décadas. Mesmo com todas as melhorias verificadas, e são muitas, não pode deixar de ser extraordinário que, por exemplo, mesmo com o aumento da despesa pública brutal no Serviço Nacional de Saúde nos últimos anos, nunca tantos portugueses (e estrangeiros em Portugal) sentiram a necessidade de contratar seguros de saúde privados, pagando, assim, em dobro, acesso a cuidados de saúde. Há muitos motivos para se contratar um seguro de saúde, mas a imprevisibilidade e aparente aleatoriedade de níveis de serviço no SNS é seguramente um deles. Cada vez mais o SNS parece ser um serviço para os pobres ou para os casos mais extremos, de que os privados também não gostam. E um sistema desigual no acesso e na oferta, consoante alguns quilómetros acima ou abaixo. 

A qualificação, especialmente ao nível do ensino superior, e a obtenção de um emprego ajustado e remunerador, pelo alargamento da economia e do Estado, foram elementos decisivos para mudar a sociedade estruturalmente pobre e analfabeta que chegou ao 25 de abril. Meio século depois, há várias conquistas objetivas a deverem ser celebradas. Mas a injustiça, que demasiados sentem hoje por se verem social e economicamente bloqueados, alimenta um sublinhar de raiva em relação a qualquer poder que se lhes apresente. Por mais que trabalhem, por mais que estudem, por mais que procurem – fica sempre algo, muito, a faltar no seu preenchimento de sonho. Não é por falta de alternativas que se sentem atraídos por quem lhes vende raiva ou egoísmo nas televisões e nas redes sociais. É por entenderem que essa é a melhor alternativa. 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Diário de Notícias
www.dn.pt