Ao ouvirmos e vermos, semanalmente, Filipa Leal a falar-nos de livros na RTP-2 em “A Pequena Biblioteca”, estamos perante serviço público de televisão ao melhor nível. Além de usufruirmos de textos belíssimos, contamos igualmente com sugestões de leitura essenciais. E uso a palavra essencial no sentido mais puro, que nos reporta aos tempos primordiais da arte. E António Mega Ferreira fala-nos de autores e de livros capazes de abalar os tiranos e os deuses. Num tempo limitado, de um modo sereno e equilibrado, num cenário atraente, podemos tomar contacto com obras-primas da literatura. Estamos perante o melhor método para enaltecer a leitura. Não há excessos, não há palavras a mais, nem temas em excesso. Temos o quanto bastante para o melhor deleite. Parte-se de um pequeno livro, acessível a qualquer leitor, e com esse pretexto abre-se-nos o acesso à obra, ao autor e à evidência sobre o grande prazer na leitura. Quando encontrámos Thomas Mann em Morte em Veneza pudemos em poucos minutos ter a demonstração da genialidade do autor, a evocar Platão no Fedro e a abrir caminho ao grande debate sobre as ideias e o mundo da Montanha Mágica. Nada foi necessário dizer sobre essa obra magna, mas fica a semente da curiosidade para quem ainda não leu ou conhece mal o autor. E assim convivemos com figuras fascinantes, como Alexis de Marguerite Yourcenar, Lappin e Lapinova de Virgínia Woolf, Cândido de Voltaire, Ivan Illitch de Tostoi, O Estrangeiro de Albert Camus, Três Mulheres de Silvia Plath (que nos permite reencontrar Agustina). Os livros sucedem-se, naturalmente. Ninguém escreve ao Coronel de Gabriel Garcia Marquez; O velho que lia Romances de Amor de Luís Sepúlveda; O Estranho Caso de Benjamin Button de Scott Fitzgerald; O Tesouro de Selma Lagerlof; ou O Fim de Lizzie e outras histórias de Ana Teresa Pereira, e seguimos fascinados essa cadeia fabulosa. Em cada nova terça-feira, preparamo-nos para receber um inesperado presente, compreendendo que um livro é sempre uma janela aberta para a vida e para o mundo. O pensamento torna-se emoção e a emoção que torna-se pensamento. E assim percebemos o antigo papel do poeta ou do contador de histórias, de falar para as pessoas. Com surpresa, deparamo-nos com a ambiguidade certeira do orador de Franz Kafka no Relatório a Uma Academia. Quem nos fala? Pode um símio interpretar o género humano? A literatura tem essa virtude de revelar os mistérios escondidos que povoam o universo. Umberto Eco ensinou-nos a entendê-lo e James Joyce, em Os Mortos, leva-nos a conviver com todos os que povoam a nossa memória, presentes ou ausentes. Jane Austen escreve Amor e Amizade com apenas quinze anos, em 1790. Mas tal é perspicácia que G. K. Chesterton a compara a Shakespeare. É uma romancista realista crítica dos românticos, descrita ironicamente como autora de uma “sátira sobre a fábula em que a mulher desmaia”, aludindo aos efeitos visuais de bombásticas declarações de amor. Muito mais do que isso, Laura e Marion dialogam entre si, na diferença das gerações, e apercebemo-nos dos importantes nadas de que nos falam e que constituem a sua vida. Aí está a virtude da leitura, não como evasão mas como demanda de nós mesmos, nas verdadeiras peregrinações interiores que nos trazem à realidade e ao sonho. Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian