A Paz não pode ser uma língua morta
A atribuição do Prémio Nobel da Paz à organização japonesa Nihon Hidankyo revela, por entre o “som e a fúria” que varre o mundo, um Comité Nobel ainda capaz de visar o essencial. Os derradeiros sobreviventes japoneses de Hiroxima e Nagasáqui foram escolhidos, não como tributo retrospetivo, mas por serem os únicos seres humanos que já viveram o inferno para onde toda a Humanidade será empurrada se continuarmos por este caminho abissal.
Há qualquer coisa de justificadamente desesperado neste prémio. Ela consiste numa tentativa de revelar ao auditório mundial, pelas consequências, aquilo que ele não parece conseguir apreender pelo conhecimento das causas. E esse auditório não é a massa dos milhares de milhões de seres humanos para quem a luta diária para sobreviver e cuidar dos filhos já é suficientemente épica. Estou a referir-me aos milhares de decisores - por esse Ocidente fora, sobretudo na velha Europa - sentados, distraidamente, nas cadeiras do poder.
O Prémio Nobel da Paz coloca, indiretamente, o dedo na ferida: o maior risco de ocorrência de uma guerra nuclear é de natureza epistemológica.
Muitas das pessoas que se encontram em posições relevantes, nas diferentes etapas do processo de decisão político-militar, aparentam carecer de conhecimento suficiente para evitar uma catástrofe. Sublinho que, mesmo em condições ótimas de competência, o risco de uma guerra nuclear acidental pode ocorrer. Não é isso que está em causa.
Dou alguns exemplos de posturas grosseiras por parte de responsáveis ocidentais. As derradeiras declarações de Jens Stoltenberg, ao sair do secretariado-geral da NATO, e as primeiras afirmações de Mark Rutte, ao assumir essa mesma função, ilustram uma inaceitável ausência de compreensão de aspetos vitais da dissuasão nuclear. Perante a recente revisão da doutrina russa de eventual uso de armas nucleares, suscitada pela possível autorização a Kiev do uso de mísseis ocidentais de longo alcance contra alvos na Rússia, ambos responderam num tom de desafio, acusando Putin de fazer “bluff”.
O risco de vida ou morte que paira sobre milhões de europeus exige estadistas e não jogadores de poker. O mesmo se aplica à multidão de eurodeputados que insiste em bombardear Moscovo (meu artigo DN 28.09.2024). Desconhecem o preço que pagaríamos pelo que desejam. Se alguma vez a existência da Rússia estivesse em causa por um ataque convencional maciço da NATO, ou se a Ucrânia lhes causasse danos inaceitáveis com armas convencionais Ocidentais, Moscovo daria uma resposta dolorosa aos responsáveis por essas ações.
O mesmo aconteceria com os Estados Unidos, se estes estivessem numa situação semelhante à da Rússia hoje. Imaginemos o que faria Washington a travar uma guerra não só no território do México, mas no seu próprio solo, no Texas, por exemplo! Unamuno, se estivesse vivo, certamente reconheceria que, afinal, a pulsão suicida não é um exclusivo da alma portuguesa…
Quer consideremos ter a Guerra Fria terminado com a queda do Muro de Berlim (1989), ou com a implosão pacífica da União Soviética (1991), percebemos que estamos a uma distância de mais de três décadas. Quase duas gerações passaram, nesta época vertiginosa. Muitos dos políticos e militares de hoje têm uma memória indireta dos 40 anos desse mundo bipolar, vivendo na sombra, simultaneamente, ameaçadora e protetora da dissuasão nuclear. O facto de a Humanidade ter saído incólume da Guerra Fria, tem uma componente miraculosa (não antecipável concetualmente), mas também uma explicação racional.
Entre 1947 e 1989-1991 foram desenvolvidas várias teorias do uso das armas nucleares (retaliação maciça, resposta flexível, dissuasão do fraco ao forte…). Quando uma teoria militar prevalece num país, transforma-se numa doutrina. Quando potenciais inimigos partilham da mesma doutrina, assistimos à construção de um sistema unificado. A língua comum que permitiu o fim pacífico da Guerra Fria foi o sistema baseado na consensualização da doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD, em inglês): numa guerra nuclear só haveria vencidos. A partir da paridade nuclear entre EUA e URSS e da Crise de Cuba (1962), a diplomacia ganhou vantagem sobre as armas. Só o assassinato do presidente Kennedy (22.11.1963) travou a rápida continuação de passos já tão importantes como o da criação de uma linha de comunicação permanente entre a Casa Branca e o Kremlin - o lendário “telefone vermelho” -, e a assinatura do tratado de proibição parcial de testes com armas nucleares, em 7 de outubro de 1963.
Paradoxalmente, foram as armas nucleares, com o seu potencial infinito de destruição, que, ao eliminarem a categoria de vitória, tornaram a guerra global uma anomalia, abrindo o caminho para um primado obrigatório da política e da diplomacia na resolução de conflitos.
Essa linguagem do imperativo da paz, decorrente do sistema da MAD, não é ainda uma língua morta, mas foi esquecida, quase totalmente na Europa e parcialmente nos EUA, devido ao predomínio da arrogância e frivolidade unipolar dos neoconservadores, que pulula no “complexo militar, industrial e congressional” (Eisenhower dixit). Talvez a fina linha entre o colapso e a continuação da odisseia histórica da Humanidade dependa de uma pequena, mas fundamental, diferença concetual identificada por Clausewitz, no seu tratado póstumo Da Guerra (1832): a guerra tem uma gramática própria, mas esta deve subordinar-se à única lógica, que é pertença exclusiva da política.